quinta-feira, 10 de maio de 2018

Excesso de gentileza - Gustavo do Carmo


Excesso de gentileza

* Por Gustavo do Carmo

Atravessa a rua pela décima vez durante o trajeto de casa para a clínica onde sua mãe faz fisioterapia. E pela décima vez acena para o motorista, agradecendo. Mesmo quando o condutor do veículo faz sinal impaciente para ele passar. Mesmo quando o sinal fecha para o carro.

Como a sua mãe idosa anda devagar e ele precisa acompanhá-la, dá passagem para os pedestres mais apressados. Alguns agradecem, mas a maioria não. E se esbarra em alguém, sempre pede desculpas. E quando lhes dão passagem também agradece.

Quando chega à clínica, não só abre a porta para a mãe, como também serve de porteiro para outras pessoas por alguns instantes. Também cede o seu lugar para idosos e grávidas. Mesmo quando tem um lugar vazio. Procura deixar os outros se sentarem perto de seus acompanhantes.

Para o pai evita pedir dinheiro. Espera ele oferecer. E ainda diz que não precisa dar muito. Faz questão de pagar as contas para ele. E quando recebe dinheiro a mais, sempre devolve o troco.

O excesso de gentileza de Benvindo incomoda. Um ex-colega de faculdade, uma vez, o debochou dos seus pedidos de desculpas. Se irritava quando o ouvia pedir desculpas toda hora em que esbarrava em alguém. E Benvindo sempre esbarrava em alguém. O coordenador de uma pós-graduação que fez o aconselhou a não ficar pedindo desculpas a torto e a direito.

E a sua mãe reclama quando ele segura o seu ombro, para que ela não caia no meio da rua ao tropeçar. E ela já tem uma prótese na omoplata e a clavícula cicatrizada por causa de duas quedas. Numa das vezes em que ele deixou de segurar ela caiu. Por sorte num banco de areia e sem ferimentos. Foi ajudado por uma moça que passava na rua. Benvindo perdeu a paciência. Ralhou com a mãe. Disse que ia continuar lhe segurando, ela querendo ou não.

Mesmo com tanta gentileza, Benvindo era boicotado pelos ex-colegas de faculdade e pós-graduação e pelos artistas que procurava para emplacar a sua carreira de escritor.

Ameaça se tornar um estúpido, mal-educado, mau-caráter e grosseiro, como muito motorista e pedestre na rua. Mas está no seu sangue. Continua gentil. Mesmo que em excesso. É a sua única qualidade. É a única maneira que Benvindo sabe para agradar alguém.


* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos”.
Bookess - http://www.bookess.com/read/4103-indecisos-entre-outros-contos/ e
PerSe -http://www.perse.com.br/novoprojetoperse/WF2_BookDetails.aspx?filesFolder=N1383616386310

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