sábado, 10 de março de 2018

O passado e nada mais - Anna Lee


O passado e nada mais



* Por Anna Lee



Ele está diante de mim. Mas não estamos no passado. Um encontro que se realiza com dez anos de atraso. Mesmo assim, tento voltar no tempo. Acho que devo isso a nós, não a ele, não a mim. Esforço-me. Agarro-me aos resquícios.

Volta e meia, ele ajeita os óculos numa ansiedade nervosa (uma redundância proposital e necessária), que persistiu. Ele também permaneceu fiel à barba, que está esbranquiçada. Uma questão de princípios. “Os homens que usam barba parecem mais dignos”. E eu concordava somente porque gostava de deslizar meus dedos por entre os fios. Não gosto mais.

Existe nele tanta coisa em desordem. Uma desordem que talvez seja minha e, por isso, me obriga ao esforço de experimentar o passado no presente. Se bem que é mais fácil suportar a dor de um tempo que não é o agora. Isso é uma vantagem. Porém, ao passado só é possível ir com o olhar de hoje. E, hoje, o passado – o nosso passado – não faz sentido. A dor é outra e profunda. Olho-o e me pergunto: Por que devo perdoá-lo? Não é uma questão de dever, mas de não quer.
Uma noite em Florença.

Eu chegara na estação Santa Maria Novella no fim do dia. Vinha de Roma. Durante a viagem de trem, tentara me distrair pensando nos cidadãos ilustres que haviam nascido naquele pedaço da Toscana: Michelangelo, Dante e Maquiavel. Uma forma de esquecer e ao mesmo tempo justificar a despropósito que, então, cometia.

Marcamos um encontro na Piazza del Duomo – uma obviedade que tinha a função de tornar aquela situação banal, como se algo em Florença, cheia de arte e passado, pudesse ser banal. Pelo menos o lugar tinha a conveniência de estar a menos de cinco minutos a pé do hotel, que, por sua vez, ficava a 500 metros da estação de trem.

A noite é fria. Há luz da lua sobre o rio Arno. Ele chega e me abraça. Abraço morno e demorado. Baixinho, no meu ouvido, repete o que dissera quando me comunicou que no dia seguinte deixaria o Rio, passaria dois ou três meses em São Paulo e, então, partiria para a Itália: “Não há futuro possível para nós”.

Ainda houve uma noite. E nenhuma outra palavra. No dia seguinte, às seis da manhã, eu já estava na estação Santa Maria. O frio era ainda mais intenso.

Um espaço de dez anos.

O telefone toca e ele me diz que está num Ritz plantado no Leblon. Quer me ver. Eu não quero, mas vou mesmo assim. Não há mais o frio de Florença. No lugar da lua sobre o Arno, há o sol da tarde que bate nas ondas e tornava o mar do Rio mais bonito, um animal imenso coberto de escamas douradas. E há o passado e nada mais.

*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.





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