quarta-feira, 14 de março de 2018

Nosso irmão, o bugre - Urda Alice Klueger


Nosso irmão, o bugre

* Por Urda Alice Klueger

Santa Catarina, via de regra, é um Estado todo bonitinho, cheio de cidades arrumadinhas e bem cuidadas, não importa muito a etnia que as formou no princípio. Aqui pelo meu Vale do Itajaí o pessoal gosta mesmo de caprichar: jardins bem cuidados rodeando casas quase sempre caprichosamente pintadas, centenas de donas de casa a usar uma preciosíssima água que deve se acabar em duas décadas para lavar e lavar calçadas que poderiam ser apenas varridas – uma beleza, todo o mundo cuidando da estética e da manutenção de uma terra que foi roubada dos... índios! É bem isso aí, gente, toda esta terra do Vale do Itajaí, bem como toda esta terra do continente americano já tinha dono antes que europeus e africanos aqui chegassem (há que se perdoarem os africanos, que para cá foram trazidos à força.). E tem gente demais, por aí, dizendo e sentindo barbaridades a respeito do nosso espoliado índio, mais conhecido pelo termo bugre, que tem conotação bem pejorativa.

Eu tenho um amigo índio chamado Edvino. Ele é Xokleng, mas tem os olhos azuis, coisa lá de uns antepassados alemães que ele teve, mas dos quais não faz conta. Decerto são daqueles alemães que furunfaram lá com as antepassadas do Edvino e depois foram para casa cheios de si, a defender ideias de raça pura, essas bobagens assim. O fato é que Edvino é um Xokleng de olhos azuis. Num sábado aí para trás tirei um tempinho para andar pela cidade, e sentei-me numa pracinha onde Edvino justamente estava a vender bonito artesanato. Daí a pouco se senta ao meu lado uma típica dona de casa blumenauense, daquelas que gastam nossa preciosa água com as calçadas, e entabulamos alguma conversa. Disse para ela:
- Vês aquele rapaz ali, de olhos azuis? Ele é um índio!

Se uma dúzia de cobras venenosas tivesse aparecido naquele momento na praça e avançado na mulher ela não teria dado maior pulo. Ficou apavorada, o coração espremido de medo, a dizer-me:
- Aquele? Meu Deus, um selvagem! – e jogou-se embora quase correndo, tamanho seu medo.

Daí eu pergunto: quem é, ou quem foi o selvagem? O índio, antigo dono das nossas terras, era (e é) tão Homo sapiens sapiens quanto qualquer um de nós que lê jornal, e o que nós fizemos com ele? Aconselho que vocês leiam um livro chamado “Índios e brancos no Sul do Brasil”, de autoria de um nosso grande antropólogo, internacionalmente respeitado, Sílvio Coelho dos Santos. Sílvio passou toda a sua vida ligada ao povo Xokleng e conhece como ninguém a sua história. Vou transcrever aqui um pedacinho do livro – é um pedacinho de uma entrevista que o Sílvio fez lá pela década de 60 com um importante fazendeiro catarinense, e está à página 87 do livro. Depois de contar muitas atrocidades sobre como se efetuava o genocídio desse povo a quem roubamos as terras, ele conta o pedacinho seguinte:

...conheci um indivíduo chamado Júlio Ramos, que participava dessas tropas. Contou-me que uma vez, durante um ataque, uma meninota de mais ou menos 14 anos tentava fugir do acampamento. Ele a alcançou, agarrando-a pelos cabelos, e desceu-lhe o facão. Este penetrou pelos ombros descendo até o estômago, cortando que nem bananeira(...)”

Duvido que você consiga almoçar bem hoje, se se lembrar de tal fato na hora da comida. E este é apenas um minúsculo pedacinho da História verdadeira. E dificilmente alguém de nós não descende de invasores que fizeram ou mandaram fazer coisa parecida. E ainda está cheio de gente levando susto quando vê índio, pensando na velha fórmula do “selvagem”. Quem é o selvagem? Eles ou nós?


* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).


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