domingo, 4 de março de 2018

Em vez de carne, livros - Aliene Coutinho


Em vez de carne, livros


* Por Aliene Coutinho



Ele leu o primeiro livro aos 18 anos e centenas de outros em seguida, de todos os estilos. Se existe “A menina que roubava livros”, ele é o cara que devora livros. Mas, ele não os conserva em estantes como decoração, passa para frente. Quer dividir com todos o conhecimento adquirido. Transformou o açougue na Asa Norte de Brasília em espaço cultural. É o único açougue do mundo freqüentado até por vegetarianos. Tem carne, tem livro, tem música, tem poesia.

E nessa democratização da cultura, fez de um ponto de ônibus uma biblioteca. Projeto, iluminação, tudo da cabeça dele, e os livros doados pela comunidade somam seis mil títulos. Na parada da quadra 712, também na Asa Norte, quem espera o ônibus, lê, e quem perde o ônibus ganha tempo para ler mais ainda. Pode levar para casa e devolver depois. Em uma semana, foram 1.110 empréstimos e sem burocracia. Para pegar o livro, basta escrever numa prancheta afixada em cada prateleira, nome e número de identidade. Parece ficção, mas está funcionando 24 horas por dia, todos os dias da semana. Quem costuma ficar na parada garante que não roubam nem a caneta. Fica tudo ali, à disposição, não tem ninguém vigiando, ou sequer atendente.

É quase um desafio. Luiz conta que na inauguração a polícia o alertou para possíveis roubos e vandalismo. Não deu bola. “Que levem. Assim alguém vai ler. Livro triste é livro na estante”. A Lena, uma estudante de pouco mais de 15 anos, que mora longe e fica quase meia hora todo dia esperando o ônibus, descobriu isso. Agora, em vez de ficar reclamando do atraso, ou roendo as unhas, lê. Já pegou emprestado e dividiu os poemas de Cecília Meirelles com a mãe e a irmã.



Outro dia passei por lá, fui ver de perto o que assisti na tv. É uma dessas paradas de concreto, com banco, ao redor ficam os livros dispostos em prateleiras abertas de metal, na parede de fundo, mais exemplares e ao lado foram colocadas duas pequenas tendas com mais livros. Em frente o vai-e-vem dos ônibus. Era um fim de tarde, hora da saída do trabalho ou da escola. Enquanto esperavam a condução, as pessoas viam, liam e respiravam livros. Observei um grupo mais distante olhando curiosamente, me fiz de boba, e perguntei se eles sabiam o porquê de tantos livros. Ressabiados me responderam que com certeza era para vender. Tentei explicar o que havia “apurado” nos poucos minutos que estava ali. E eles responderam: “Quem é o louco que teve essa idéia? Isso não vai durar muito”.

O louco se chama Luiz Amorim, que adora os clássicos e não clássicos, que acredita que a leitura leva à reflexão e nos faz crescer. Assim como aconteceu com ele, que foi alfabetizado aos 16 anos e até hoje revela o mundo e a vida para quem quiser, num açougue, ou num ponto de ônibus.     

* Jornalista, professora de Telejornalismo.



 

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