sexta-feira, 9 de março de 2018

A casa da colina - Guilherme de Almeida


A casa da colina

* Por Guilherme de Almeida

– Que ideia a sua, ir morar naquele fim de mundo!

Era o que me diziam os amigos quando, há doze anos, construí a minha casa nesta colina, a oeste do vale do Pacaembu.

Fim de mundo?... Podia mesmo parecer isso. Rua curva, corcovada, de um só quarteirão e com três casas somente (a minha foi a quarta) separadas por terrenos sem muro nem cerca e eriçados de mato hirsuto e anônimo — era apenas uma estrada rústica. A nota agreste: ponto alto e deserto, exposto a descabeladas ventanias que assobiavam noite e dia; e, numa árida escarpa, a uns quarenta metros dos meus muros, o ninho de todos os gaviões que erguiam voo — pinhé! pinhé! — e iam, lá longe, fisgar os pardais da Praça da República. A nota fúnebre: no jardim da casa fronteira, uma lâmpada triste, única iluminação da rua, pendia de um “L” invertido feito de fortes vigas de peroba que formavam exatamente uma forca; e atrás, em pano-de-fundo, parte pobre de um cemitério, uma encosta semeada de túmulos e cruzes. A nota gloriosa: no horizonte, ao norte, fechando a perspectiva da rua, o recorte pontudo do Jaraguá, o “Senhor do Plaino”, primeira numeração de ouro no Brasil; e, sobrelevando o apinhado central, a sudeste, o Banco do Estado, ascensional, alvo obus de louça, com a sua ogiva de luz fluorescente nas noites caladas. A nota simbólica: com o Estádio Municipal, que é toda a alegria da Vida, de um lado, e, de outro, a necrópole do Araçá, que é toda a tristeza da Morte, assim, entre os dois extremos da contingência humana, a minha rua ia indo filosófica, indiferentemente. A nota pessoal: aí assentei a minha casa, porque o lugar era tão alto e tão sozinho, que eu nem precisava erguer os olhos para olhar o céu, nem baixar o pensamento para pensar em mim.

E a minha casa me fez fazer, entre os meus “Dez Versos para Casa da Colina”, este verso:

A estrada sobe, para, olha um instante, e desce”...

Ora, eu subi, parei, olhei um instante, e fiquei. Fiquei vivendo a vida daquele suposto 
fim de mundo, que era de fato um começo. Começo de um pequeno mundo que eu vi, dia a dia, ir-se fazendo em torno de mim. Todo aquele caos primitivo foi-me, pouco a pouco, encantando. Quando das grandes chuvas, o lamaçal, escorrendo pela rampa, fazia atolar-se ali embaixo, nas valetas de confluência, automóveis e guinchos. Os “chauffeurs” de praça deixavam a gente na esquina, recusando-se a subir, com medo da derrapagem. O muro do cemitério ruiu, certa noite, minado pela enxurrada a gorgolejar, levando ladeira abaixo ossadas humanas...

Assim mesmo, mais duas ou três casas ergueram-se, bonitas e corajosas, na minha estrada. E, por uma bela manhã do ano de 1950, surgiram autoniveladoras, rolos compressores, caminhões despejando pedra britada e tambores de piche; aplainou-se o leito carroçável; assentaram-se os meios-fios; e, de ponta a ponta, desdobrou-se pela estrada uma grossa, negra e lisa passadeira de borracha.

Asfaltada a rua, multiplicaram-se logo, nos terrenos baldios, as tabuletas com uma designação de metragem e um número de telefone. E foram desaparecendo as tabuletas e aparecendo uns homens que abatiam o mato e deitavam-lhe fogo. Outros, com caminhões descarregando enormes tábuas servidas... Mais outros, construindo com tijolos usados uma espécie de maloca, que tinha um fogareiro dentro, fumegando. Outros mais, que nivelavam o terreno, esticavam barbantes presos a pequenas estacas, desenhando no chão um problema geométrico. E ainda outros, trazendo pedras, tijolos, telhas, cal, cimento, areia e cerâmica, e abrindo fossas retilíneas das quais subiam, verticais, ao mando de um fio de prumo, puras, viçosas, claras, as casas novas. Não tardou muito, a Light plantava, ao longo dos passeios cimentados e gramados, oito postes de concreto: e na ponta dos seus braços de cano de ferro, acenderam-se, numa só noite, as oito lâmpadas. Foi a festa da rua.
Começou a haver, então, criançada batendo bola, empinando papagaios, pedalando bicicletas, riscando a giz no asfalto a “amarelinha”. Carros estacionados a frente das casas. Gente conversando nos portões. A buzina do tripeiro e o pregão do fruteiro. Domingos de “short”. Corretores e interessados, que chegam de automóvel, param junto aos poucos lotes restantes à venda, farejam, tomam nota e...

Que idéia, a minha, vir morar tão perto do centro!

Ela está ali mesmo, a Cidade Desumana, a seis minutos de auto e quinze de ônibus. Ali mesmo, onde a joalheria dos cartazes-luminosos enfeita as noites turbulentas. Ali mesmo... 
Que ideia a minha!

Mas, não. Eis o noturno da minha mansarda encarapitada nesta colina, isolada na altura. Corro os caixilhos da janela. E ouço São Paulo. O bojo acústico do Pacaembu está aí embaixo. Ausculto-o. Nele reboa e chega-me aos ouvidos — como se escuta nas conchas um oco marulho de distante oceano — o surdo murmúrio da urbs absurda. E ela me parece tão longe, tão longe, que isto aqui, graças a Deus, é mesmo um fim de mundo.


(Texto gentilmente fornecido por Sidnei Vieira, do Museu Casa Guilherme de Almeida).


* Advogado, jornalista, heraldista, crítico de cinema, poeta, ensaísta e tradutor. Foi eleito, em eleição popular, como o “Príncipe dos Poetas” brasileiros. Foi imortal da Academia Brasileira de Letras.

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