quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Zé da Carminha responde a Chico Bernardino - Adriano Spínola


Zé da Carminha responde a Chico Bernardino


* Por Adriano Spínola


cumpadre Bernardino
minha vida é bem outra:
já não venho do sertão
mas de outros sumidouros

daqui mesmo da cidade
por onde passou meu corpo:
nas favelas em que morei
como quem veste uma roupa

roupa suja emprestada
(pois a terra era dos outros)
roupa de taipa apertada
quase pregada nos couros

e foi trocando tal roupa
que vim parar onde estou
morando neste quarto buraco
como quem no barro se abotoa

por isso cedo aprendi
a viver como quem pousa:
hoje no pó duma lagoa
amanhã nas costas dum morro

não por mim essa andança
(pois sempre mudei à força)
mas pelos donos da cidade
que nos enxotam feito moscas

cumpadre Bernardino
deixe dizer-lhe outra coisa:
um homem bem que se perde
no próprio chão que povoa

basta viver agoniado
com a miséria em seu trono
pelejando à beira-vida
o dia que finda reimoso

por passar por tantas mudas
aprendi mais uma coisa:
a casa de cada homem
começa no próprio corpo

que se estende nos filhos
na mulher e nas coisas
que ele coloca ao redor
prá se sentir mais duradouro

porém aqui nesta favela
(bem como em qualquer outra)
a vida fere com seus cacos
pois nunca mostra seu todo

morando assim desse jeito
onde tudo é raso e pouco
um homem pode sentir-se
menos vivo do que morto


* Poeta cearense.

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