quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Rio de Janeiro/La Paz - Urda Alice Klueger


Rio de Janeiro/La Paz

* Por Urda Alice Klueger

Apesar de estar todo o mundo segurando o Tcham, o carnaval mais bonito visualmente, no Brasil, é o do Rio de Janeiro. Andei desligada do mundo, durante o carnaval, num camping onde não chegou a menor notícia sobre o mundo (que bom que a Guerra Fria terminou e a gente não se preocupa mais com o começo da guerra nuclear!), e só me dei conta que era terça-feira de carnaval há pouco, quando cheguei em casa e liguei a televisão. Na telinha, passava um condensado do desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro que, cá entre nós, era para botar água na boca de qualquer um de qualquer lugar do mundo. Nosso carnaval é extremamente sensual, leve, solto, lindo, e seu luxo e seu ritmo são inigualáveis. A boca aberta de admiração me pus a comparar o nosso reinado de Momo com o reinado de Momo que vi em La Paz, e, haja diferença! É sobre isso que eu quero falar agora.

Como todos os leitores sabem como é o carnaval do Rio de Janeiro, vamos logo para o carnaval de La Paz.

Na verdade, eu não vi o carnaval de La Paz – estive lá em maio, ele já tinha passado. Mas vi um vídeo a respeito, um vídeo que gostam muito de mostrar aos turistas, e que provocou em mim em Sônia, minha amiga que estava viajando junto, discretos frouxos de riso, para não melindrar os bolivianos.

Em La Paz há um grande carnaval. Desfiles acontecem na avenida principal, com muita gente usando fantasias muito caras, feitas de lã ou em veludo de cores escuras e vivas, como o vermelho e verde, riquíssimas fantasias tipo pajens da Idade Média, afogadas fantasias de mangas compridas (como sentem frio os bolivianos!). Até aí tudo bem, cada povo se fantasia de acordo com o frio que sente, mas aí vem o ritmo.

Bateria de escola de samba, na Bolívia, é algo formado por três homens que tocam bumbo, e marcam o compasso de algo que está mais para marcha do que para outra coisa. Não há passos, nem o menor vislumbre de ritmo, nem nenhuma ginga, nem nenhuma leveza, e não há jeito de se achar que é harmônico aquelas verdadeiras patadas (não estou querendo ofender os bolivianos, mas estou achando outra palavra adequada –aquilo seria patada se fosse dada por brasileiro também) que eles dão no asfalto. Os bumbos e as patadas tinham feito com que Sônia e eu começássemos a nos cutucar e a esconder o riso, quando entrou em cena um bloco de beldades bolivianas, com certeza as divas do carnaval deles. Eram lindas moças com caras de índias, bonitas, e em algum momento das suas vidas elas tinham ouvido falar da sensualidade e das fantasias que existiam num distante lugar chamado Rio de Janeiro. A notícia tinha chegado para elas bem esmaecida, mas tinha. E elas tinham feitos as fantasias mais ousadas de toda La Paz.

Como seriam as fantasias das ousadas bolivianas bonitas? Eram de veludo também, afogadas e de mangas compridas, mas elas estavam arrasando com uma ousadia total: ao invés de saias compridas, tinham feito uns saiotes rodados, que desciam uns dez centímetros abaixo da bunda, e mostravam as pernas envoltas em meias de seda. A chegada delas foi a maior sensação, muitos homens desceram da calçada para ver mais de perto aquele charme todo, e passaram a segui-las quase com a língua para fora da boca. E então começou a acontecer o inimaginável: nossas divas também tinham ouvido falar numa coisa chamada ginga, e tentaram criar a sua – o resultado era mínimo, elas se limitavam a mexer com os quadris para cá e para lá rapidamente, faltava muito para que aquilo se tornasse um rebolado. Só que algumas (eram umas oitos) conseguiam, eventualmente, um efeito surpreendente: com aquele balançar rápido das sainhas rodadas, às vezes faziam aparecer a beiradinha de uma calcinha de renda branca.

Gente, a galera ia ao delírio! Com aquela semi-ginga e o eventual aparecimento da renda branca das calcinhas, os homens foram à loucura! A calçada inteira desceu para a rua, para ver mais de perto, e quase dava para ouvir, no vídeo, o pulsar descompassado dos corações de todos aqueles espectadores enlouquecidos pelo máximo de sensualidade que a sua gente era capaz de ousar. Nessa hora, diante do vídeo, Sônia e eu nos afogávamos para conter o riso, ao compararmos instintivamente o que víamos com o que sabíamos que era o carnaval no Brasil, principalmente o maravilhoso carnaval do Rio de Janeiro.

Assim conservadora é a nossa gente andina. Fico pensando se soltarmos um punhado de paceños na Marquês de Sapucaí, qualquer carnaval desses. Será que eles sobreviveriam à ousadia da sensualidade e do ritmo brasileiros? Lembro do velho ditado que diz que a gente se acostuma a tudo, mas será que a gente se acostuma mesmo? Gostaria de ver a experiência dos bolivianos soltos no Rio de Janeiro no carnaval.
(Texto publicado originalmente em 1996)


* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).



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