Ópera popular
“Os
desfiles de escolas de samba, principalmente os do Rio de Janeiro,
que são mais sofisticados e melhor produzidos, são, a rigor,
apresentações de óperas, posto que populares. Com a vantagem,
sobre as tidas como eruditas, de que o espectador pode se deliciar
com doze peças, em duas noites consecutivas, em vez de assistir a
apenas uma, das companhias operísticas tradicionais”.
Com
estas palavras, iniciei uma longa conversa (que deverá render vários
textos, aqui no Literário e em outros espaços da internet que
frequento) ontem, com um amigo, intelectual de reconhecida cultura,
mas que tem visão estritamente reducionista a propósito Nosso
assunto foi o carnaval. Ele, apresentando todos os argumentos
contrários a essa nossa tradicional festa popular. Eu, da minha
parte, mesmo admitindo alguns excessos, ressaltado o lado positivo, o
artístico sobretudo, desse evento anual.
Meu
interlocutor, diante da minha afirmativa inicial, olhou-me de forma
irônica e até um tanto assustada, dando a entender que se
surpreendera comigo e que eu havia dito o maior dos disparates. “Você
não pode comparar as duas coisas, que são imiscíveis, como óleo e
água Pedrão”, respondeu-me, um tanto a contragosto, e em tom um
tanto pedante, destes que às vezes adotamos com crianças às quais
buscamos explicar algum conceito que extrapole seu nível de
compreensão.
“Por
que?”, indaguei, perplexo, porquanto esperava que o amigo
contrapusesse minhas ideias com outras, lógicas, e não com a tática
de ridicularizar quem diz algo com o que não concordamos. “Ora,
ópera ao ritmo de samba?! Só na sua cabeça!. Esse é um gênero
musical que implica em sofisticação rítmica, em técnicas apuradas
de canto, em enredos eruditos e criativos”, respondeu-me.
Redargui-lhe,
no entanto, que ele estava equivocado a propósito. Lembrei-lhe que a
ópera surgiu com a intenção de ser manifestação cultural
popular. Ocorre que na época do seu surgimento, o atraso das massas
(e numa Europa tida hoje como modelo de civilização) era tamanho,
por carência de informações, que ela acabou por se elitizar
automaticamente. Eram raros os que tinham capacidade para
compreendê-la e, por isso, apreciá-la.
Argumentei
que então, não existiam os meios de comunicação de que dispomos e
aos quais até as pessoas muito pobres têm acesso. Não havia rádio,
televisão e muito menos internet. Se alguém ousasse prever a
invenção do computador, e ainda mais do PC, seria considerado
insano e ninguém lhe daria a menor atenção. Isso se não
providenciassem sua internação urgente em algum manicômio. Até
mesmo os jornais estavam, apenas, engatinhando.
Meu
amigo, claro, não se convenceu. “Ópera composta para instrumentos
de percussão? Ainda mais samba? Você está delirando!”, tentou,
dessa forma, desqualificar meu argumento. “E o enredo? Você quer
comparar essas coisas cantadas exaustivamente no sambódromo com
‘Carmem”, ou com ‘Aida” ou mesmo com ‘O barbeiro de
Sevilha’?! Você só pode estar brincando”.
Resolvi
apelar, mas não da maneira que vocês possam pensar (e que na
verdade já tanto queria), mandando o tal amigo para a pqp. Não, não
foi esse o tipo de apelação a que recorri. Ocorre que gravei os
desfiles de 2010 no Rio de Janeiro. Nem sei porque fiz isso, pois nos
anos anteriores nunca os havia gravado. Fui até o armário em que
estava a fita, coloquei-a no aparelho de TV, e parei na apresentação
da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense.
Para
facilitar minha argumentação, entreguei-lhe a letra do
samba-enredo, que penosamente havia transcrito no computador e
imprimido, para o meu deleite pessoal e não para servir de prova ou
coisa que o valha. Gosto de tudo o que é bem feito, não importa o
que ou por quem.
“Leia
esta letra. Não é um primor de poesia?”. E passei a ler em voz
alta a letra do samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense, cujo título
era “Brasil de todos os deuses”:
“Terra
abençoada!
Morada
divinal.
Brilha
a coroa sagrada,
reina
Tupã no Carnaval…
Viu
nascer a devoção em cada amanhecer
viu
brilhar a imensidão de cada olhar
num
país da cor da miscigenação,
de
tanto deus, tanta religião
pro
povo feliz cultuar.
O
índio dançou em adoração,
o
branco rezou na cruz do cristão,
o
negro louvou os seus orixás,
a
luz de Deus é a chama da paz.
E
sob as bênçãos do céu/e o véu do luar
navegaram
imigrantes
de
tão distante, pra semear
traços
de tradições, laços de religiões.
Ó
Deus pai! Iluminai o novo dia!
Guiai
ao divino destino
seus
peregrinos em harmonia
a
fé enche a vida de esperança
na
infinita aliança
traz
confiança ao caminhar
e
a gente romeira, valente festeira
segue
a acreditar
a
Imperatriz é um mar de fiéis
no
altar do samba em oração.
É
o Brasil de todos os deuses!
De
paz, amor e união”.
Depois
de ler este magnífico poema, voltei-me para meu atônito
interlocutor e desafiei-o: “Diga-me, e prove-me (como eu acabei de
fazer), que ópera das tantas que você conhece (e que conheço
também, pois, como você sabe, sou fiel apreciador do gênero), tem
tamanho conteúdo? E num tema tão difícil, ou seja, o da religião,
que tanto sangue já fez jorrar ao longo da história. E tudo isso
acompanhado de imagens concretas, de carros alegóricos e vestes
apropriados, e cantado por uma multidão de artistas, se não me
falha a memória 3.600, sem destoar e nem sair uma vez sequer do
ritmo. Ademais, essa belíssima ópera, e insisto nesse ponto, foi
apresentada não por tenores, barítonos, sopranos etc,
profissionais, mas pelo povo simples e comum. E não me venha dizer
que estou inventando moda! É ópera, sim senhor, e da melhor
qualidade!”, arrematei.
Meu
amigo não se mostrou convencido e contra-argumentou. Mas... seu
questionamento e minha respectiva contra-argumentação revelarei a
vocês algum dia, possivelmente amanhã ou talvez nunca. Por
enquanto, reflitam sobre o assunto e concluam com quem está a razão.
Boa
leitura!
O
Editor.
Não sei a definição de ópera, mas se for poemas cantados e representados, você parece ter razão. É arte toda, ainda que impura e profana.
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