quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Os bolos da tia Iolanda

* Por Tânia Haskel

Na década de 70, quando eu ainda não tinha esse horroroso tom de louro-cinza nos cabelos, mas sim, cachos dourados da cor das espigas de trigo amarrados em laço de veludo azul, e nas rádios esgoelavam-se Beatles e Rolling Stones; as famílias costumavam visitar-se todo final de semana, via de regra, a família do meu pai, e na maioria esmagadora, íamos na casa dos que moravam em Blumenau. Tínhamos tios em Luis Alves, Ibirama, Encano, Ascurra, mas muito longe para uma “passadinha” típica de domingo.

Na Blumenau daqueles tempos, não havia televisão na maioria das casas, nem qualquer outra grande opção para diversão na cidade, além de dois cinemas, salões de bailes e domingueiras. Mas isso era coisa para adultos e solteiros... E nessas visitas de domingo, automaticamente já se marcavam as próximas reuniões, festas ou visitas, e não era raro que mais de um núcleo da família se visitassem ao mesmo tempo. Meus irmãos raramente iam junto nessas incursões, pois no auge da adolescência, queriam mais era ir ao cinema, às festinhas do Clube Subtenentes ou ficar em casa ensaiando suas músicas ao violino e gaita, as músicas de bandinhas alemãs que animariam as festas lá de casa, quando nós fôssemos a bola da vez. E lá íamos nós, engomados nas nossas “becas” de domingo, à espera do ônibus, de boa vontade pelo meu pai e não raro, à contragosto pela minha mãe.

Mas era tradição, e rotineira. E qual era o roteiro: Por ser mais perto da nossa casa, íamos muito na casa do Tio Nicolau. Tinham uma casa muito velha, no bairro Água Verde, toda tomada de cupins, com tudo que tinha dentro caindo aos pedaços também, mais parecendo uma casa mal assombrada. Eram dois viciados. Minha tia, esquelética, vivia em função de fumar um cigarro atrás do outro, cuidar do boteco que tinham na frente da casa, num cômodo reformado, e de gritar com meus dois primos, quando as traquinagens ultrapassavam o ponto de inércia dela. Seus cabelos excessivamente brancos apesar dela ser relativamente jovem, sempre estavam de mal com os ventos.

Ela parecia mais uma personagem saída dos contos de fada, não exatamente na figura da princesa... e não por nada, o nome dela era Alma... Eu não entendia muito o porquê daquelas nossas visitas, porque sempre voltávamos prá casa “defumados em nicotina” e com os cabelos cheios do “subproduto” dos cupins. Meu tio, sempre recostado na cadeira de balanço que ficava ao lado da janela da copa, cuja asa direita pendia pela falta de parafusos em uma das dobradiças superiores, estava sempre à ouvir algum jogo no rádio SEMP. No caso, o preferido era o clássico entre Palmeiras e Olímpico, times de elite blumenauenses, há muito extintos.

Vestido com uma camisa do Flamengo que mal lhe cobria o volumoso abdômen, parecia nem notar nossa presença, só acenava distraidamente, absorto e focado no radialista que punha toda a emoção naquelas narrações esfuziantes e irreais, no som do seu radinho de pilha. Ele socava a mesa, xingava o juiz, a mãe do juiz, os jogadores, até o gandula caso atrasasse a reposição da bola. Só mesmo quando tocava o apito final é que ele nos percebia na totalidade. Ninguém se importava com isso, ficávamos de papo com minha tia, que sabia conduzir uma conversa animada como ninguém, cheia de histórias e “detalhes sórdidos” de todo o clã, em especial, dos Haskel do Garcia.

Daí, meu tio finalmente se juntava à nós, contando detalhes do jogo, por vezes irritado com o resultado, por vezes feliz com a vitória do Olímpico, e eu adorava ouvi-lo dando aquela risada que mais parecia a do Papai Noel, um sonoro ho-ho-ho! Minha mãe ficava abismada que minha tia conseguisse fazer o “café das visitas” sem largar um dedo sequer do cigarro aceso, e com sorte, não éramos sorteados com cinzas ou alguma bituca nas xícaras. Ela era viciada no cigarro, e ele, no futebol, e acredito que esses vícios, somados ao trabalho no boteco, era o que lhes impedia de dar um upgrade na casa. Mas tanto eles como aquela casa velha são riquezas nas minhas lembranças de infância, pois foi lá que passei um dos natais mais memoráveis da minha vida, com Papai Noel de verdade, com meus primos acuados num canto da sala, apavorados... mas isso é assunto para outra história…

Outras vezes visitávamos o Tio Albert, na Fortaleza, bairro distante do centro, mas onde gostávamos de ir por se localizar num vale belíssimo, cercado pelo verde dos pastos e com uma imensa mata de eucaliptos e pinheiros a perfumar o ar. O sítio desse meu tio ficava no canto onde as montanhas se abraçavam, e a casa, estrategicamente situada aos pés delas. Era muito silencioso ali, só se ouvia o canto dos pássaros e o vento revolvendo as matas. Mais parecia o endereço da paz. O caminho para chegar à casa era ladeado de margaridas, caprichosa e pacientemente plantadas pela minha tia Anne, e eu achava aquilo esplêndido, pois vivia repleto de borboletas.

Meu tio, um simpático gordinho de suspensórios, bochechas rosadas e de apertados olhos azuis, nos aguardava na porteira que limitava o quintal da casa e dos pastos. O quintal era repleto de flores multicoloridas, plantadas em belos canteiros, tudo tão bem cuidado, que dava gosto ficar olhando e admirando a generosidade da natureza naquela profusão de cores. A casa era antiga mas bem arrumada, com sua varanda cheia de gerânios nas floreiras, a cozinha fresca pela brisa que soprava pela janela, tremulando nas cortininhas de xadrez bordado e o cheiro dos eucaliptos envolvia tudo. O quintal era pontilhado de aves domésticas, mas eu gostava era de chegar lá e tocar o terror nos patos.

Meus pais como sempre, se reuniam com meus tios em intermináveis conversas na sala. Ficava imaginando o que tanto eles conversavam, como conseguiam se divertir passando o dia todo falando! Pensava nisso, ao mesmo tempo em que corria atrás dos patos, aves desengonçadas e engraçadas mas que me encantavam. Me era proibido sair para os pastos pois o touro mais bravo do meu tio estava solto e eu, até hoje, morro de medo desses bichos. Depois de correr a manhã toda atrás daquelas pobres aves, sem primos para brincar, sem poder correr nos pastos, acabava ficando entediada.

Naquela casa não havia brinquedos porque meus tios nunca tiveram filhos. O que compensava ir lá eram os almoços da minha tia, verdadeiros banquetes repletos de pratos da cozinha alemã, temperados no agridoce. Marreco recheado, farofa de frutas, chucrute com anis, nhoque de batata doce dourado na manteiga e farinha de rosca, picles de beterrabas e pepino na folha de uva. E as sobremesas: ovos nevados boiando num creme rosado feito de amoras, sagu de vinho com calda de baunilha, calda de carambola com pudim de chocolate... imperdível!!! Saíamos de lá rolando…

E tinha a vez de ir na tia Walinka, também no Água Verde, pouco mais distante do Tio Nicolau, mas relativamente perto para irmos à pé. Era nossa “tia revendedora da Avon”. A casa cheirava à “Charisma” e” Toque de Amor”, conhecidas fragrâncias da perfumaria famosa. Estava nesse ofício desde que a conhecíamos e era o que ela mais gostava de fazer para driblar as ausências do meu tio Oswaldo, indo de casa em casa com sua sacola de revendedora. Meu tio era dono de uma boate em Ascurra, pequena cidade do interior catarinense e raramente estava em casa, pois o movimento maior do “estabelecimento” era nos finais de semana.

Nessas visitas, meu pai nunca ia, por conta da ausência do meu tio, por não ter com quem manter assuntos e conversas de homem. Eu adorava ir lá porque tinha 3 primas e 1 primo quase da mesma idade que eu, e brincávamos de gastar a sola do pé. Meu primo era mais “na dele”, não ficava muito conosco, mas gostava da nossa visita porque minha mãe sempre levava bolo de queijo prá ele. Era um pequeno chantagista, falando que só gostava de ir na nossa casa por conta do bolo de queijo da minha mãe, e ela tendo ouvido isso, nunca o decepcionava. Conosco, essa chantagem funcionou do contra, pois ele ganhou o direito de ficar sempre de escanteio nas brincadeiras.

Um dia, minha tia chegou lá em casa chorando, e depois de uma longa conversa com meus pais, deixou minhas primas e meu primo lá em casa, num ato desesperado, decidida a ir atrás do meu tio e quem sabe, trazê-lo à realidade da vida, fazê-lo lembrar que tinha uma família. As ausências dele estavam cada vez maiores e as presenças mais espaçadas, era mister que se tomasse alguma atitude drástica. Minha mãe se apavorou na iminência de ficar com 5 crianças em idade escolar em casa, com responsabilidade quadruplicada e com mais 4 bocas para alimentar, mas não poderia negar esse favor à minha tia, pois tinha pena e sabia o que ela passava tendo que criar e educar 4 crianças, praticamente sem ajuda. Eu fiquei feliz da vida, pensando que tinha ganhado 3 irmãs e mais 1 irmão, e que eles ficariam lá em casa prá sempre. Mas algumas semanas depois, minha tia voltava, sozinha, entristecida, prá buscá-los. O planejado não dera certo. Deixou alguns perfumes prá nós como agradecimento e se foi. Minha ilusão de ter uma família gigante cairia por terra e a vida voltaria ao seu curso normal.

Mas o programa mais legal, o que mais gostávamos dessas visitas domingueiras era de ir na casa do tio Fridolin e da Tia Iolanda, no Garcia. Quando minha mãe anunciava com indisfarçável sarcasmo: “arrumem-se que hoje vamos na casa dos Barões !!!”, já sabíamos que iríamos ter um dia atípico. Esse núcleo da família do meu pai era caricato. Não se sabe bem porque, se achavam a “nata” da sociedade blumenauense, com um braço na realeza, só porque detinham o único automóvel de toda a família Haskel na época, e mesmo assim o aparato ficava mofando, estacionado infinitamente na garagem, pois ninguém da casa sabia dirigir. Minha prima Madalena tinha pavor até de chegar perto daquela geringonça e meu primo Osvaldo não se interessava, pois sabia que se aprendesse a dirigir, teria que levar todo mundo prá lá e prá cá contra a sua vontade. Foi esperto. Quando meu tio resolveu que enfim, tirar a carta, foi do Garcia até na Fortaleza, na casa do meu tio Albert – prá se mostrar, claro – todo em 1ª marcha, e tanto forçou o motor que o carro pegou fogo quando chegou ao seu destino! Motivo de chacota por décadas…

Minha tia Alma soube do incidente e foi a pilhéria do ano, a família toda ria de se acabar. No alto do seu nariz empinado, logo compraram outro carro e calaram o riso de todo mundo. Ponto prá eles. Se achavam os contemporâneos por manterem um filho na Alemanha. Para a sociedade blumenauense dos anos 60-70, sem informação suficiente, achava-se que era o poder dos poderes quem pudesse mandar um parente prá estudar ou trabalhar na Europa, mas o detalhe sinistro, o que ninguém esclarecia, era de que a Alemanha contratava estrangeiros para fazer o trabalho sujo da reconstrução do pós-guerra, serviços que eles mesmos não queriam fazer, e sabe-se lá o que isso poderia significar... mas meus tios rolavam em cima dessa bravata. Meu primo, mais esnobe ainda que os pais, dificilmente os teria deixado cientes de que na realidade carregava tijolos, limpava latrinas, faxinava obras na dita “promissora” Alemanha capitalista. Alheios a isso, saboreavam o status de terem uma casa duplex numa área livre de enchentes (curioso é que isso, ainda hoje, é um status velado em Blumenau...).

Era uma casa confortável, realmente, com suntuosas cortinas de veludo vermelho na sala, lustres de cristal, móveis de jacarandá, tapetes peludos, e eletrodomésticos modernos de ultima geração na cozinha (em 1970 traduzia-se “última geração” como sendo ter liquidificador e batedeira de bolos...). Também gabavam-se de ter uma casa de praia em Camboriú, mas o que ficamos sabendo é que o imóvel ficava tão longe da praia propriamente dita que se alguém quisesse se refrescar nas cálidas águas do Atlântico sul, teria que ir de ônibus ou táxi. A “baixa casta” da família, provavelmente por despeito ou inveja mesmo, se divertia, deitava e rolava comentando o fato.

Chegar lá e ver a coleção de postais que o antipático e narigudo primo Nelson acabara de mandar das frias terras germânicas, era programa obrigatório para as visitas. Fazia parte do roteiro... Aí tínhamos que aguentar postal por postal, foto por foto, toda a falácia em torno dos grandes feitos do “Nelsinho” no trabalho, saber o que o “Nelsinho” comprou de bárbaro, o que a Alemanha tinha de legal e diferente do Brasil, e blá-blá, blá... Meu pai fazia vistas grossas diante dessa galhardia toda, mas minha mãe torcia o nariz quando a coisa tomava proporções tais que ficava em vias de minar o “enfastiômetro” dela. Mas tudo isso fazia parte da espera para o grande momento, a apoteose da visitação.

Prá mim, o divertido era poder me esbaldar de brincar naquela sala aveludada, correr entre aqueles móveis, afundar nos tapetes, mas sempre sob o olhar atônito da minha tia, disfarçado de sorriso amarelado. Aí, numa pausa, ia ver os postais e fotos com neve do meu primo esquisito do estrangeiro. Mas o melhor, o que realmente nos levava até lá, o que nos fazia aguentar todo aquele pavoneamento, os ares superiores, o peito estufado dos meus tios, eram as maravilhas em camadas que minha tia trazia orgulhosamente da cozinha: os seus famosos bolos confeitados. A fama desses bolos corria solta pelo bairro e todo mundo da família já tinha provado e aprovado com louvor e olhos esbugalhados. Não fossem tão bons, duvido que alguém quisesse de fato voltar a visitar a “Família Pavão”.

Minha tia não era profissional, teve o privilégio de nascer com esse talento inato. Nunca trabalhou na função porque talvez se achasse “madame” demais prá trabalhar fora. E meu tio alimentava essa soberba dela porque do alto do seu discurso machista, não conseguia imaginar a mulher trabalhando para os outros e quem sabe, o inadmissível, ganhando mais dinheiro que ele. Enfim, uma pena. Além de belíssimos, essas maravilhas em pedaços exalavam um aroma, que confeitaria “classuda” nenhuma conseguia imitar, nem com aqueles balcões lotados das mais finas iguarias. Era um aroma misto de levíssima massa branca misturada à pura fava de baunilha, com as nuances do aroma de chantilly e leves notas de limão persa, que se espalhava no ar como a mais fina fragrância francesa. Tão singular que conseguíamos adivinhar seu recheio.

Minha tia os trazia à mesa com um sorrisinho de satisfação no canto da boca, pois era segura do seu talento e do sucesso que faziam. A mesa posta para o café, prá mim, era digna dos mais suntuosos palacetes da realeza. Tortas, bolos, folheados açucarados, biscoitinhos recheados diversos, tudo saído das mesmas mãos de fada e servidos em belíssima porcelana Schmidt, item indispensável na lista de casamento daqueles tempos. A “parte rude e tosca” da família, que éramos nós e todo o resto do clã, avançávamos sem pudor naquelas fatias de paraíso.

Me recordo até hoje, de um bolo magistral, todo salpicado de balinhas de chocolate colorido (protótipo do M&M de hoje). Era para o aniversário da minha prima Madalena. Muito alto, devia ter umas 10 camadas de recheio, e vinha todo pomposo no alto de um prato de cristal próprio, com pedestal. Envolto em generosa camada de levíssimo chocolate maltado, era todo bom, no visual e uma festa para o paladar. Quando meu prato foi servido, pude experimentar a mais sublime sensação gastronômica da vida! A massa perfumada, leve, com recheio de creme de ameixas pretas e nata batida com baunilha, tinha um quê de encantamento indefinível. As bolinhas coloridas explodiam na boca, liberando um creme achocolatado que até hoje nunca experimentei e do qual nunca esqueci, está marcado na minha memória gustativa prá sempre.

Ao fim da visita, com os ouvidos doendo, levávamos prá casa, como prêmio da “confeiteira”, generosos pedaços daquelas delícias, finamente embrulhadas em guardanapos de papel rendados. Eles não davam ponto sem nó, sempre fazendo-nos lembrar de nossa condição inferior e de sua superioridade, fosse num pedaço de papel afrescalhado como o que envolvia as sobras de bolo. Mas nem ligávamos...tudo nos faria relembrar e nos daria motivo para passarmos horas ao redor da mesa do café no dia seguinte, rindo e confabulando sobre eles, do modo de vida deles, e de como eram emproados, cheios de si, bravateiros, e das inegáveis maravilhas servidas naquela visita. Quando seria a próxima? Dependeria dos cartões enviados pelo tímido e fanhoso primo Nelson.


* Escritora de Blumenau/SC.

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