Maktub:
Estava Escrito
* Por
Mara Narciso
Dizer
que o livro me chegou às mãos, que eu o devorei de um só fôlego,
que a riqueza de detalhes impressiona, que me permitiu um mergulho na
infância da autora, que só mesmo lendo para avaliar o conteúdo...
Não, não e não! Não é nada disso. Quem é Marijô Rodrigues? Há
escritores de boas obras que ficam conhecidos apenas em seu meio,
ainda que exista a internet. O que melhor caracteriza Marijô é a
humildade de quem passou a vida pedindo desculpas por ocupar um
espaço que julga não ser seu, e claro, suas emoções ricamente
desnudadas na escrita. No dia 16 de março de 2018 a autora completa
oito décadas de vida. É membro efetivo da Academia Feminina de
Letras de Montes Claros, mas, fatores de ordem prática a levaram da
cidade. Nascida em Cônego Marinho - MG, antes distrito de Januária,
foi para São José dos Campos – SP para ficar com os filhos.
Timidamente, ela me mostrou poemas seus dissecados em doutorados na
Unimontes. Depois, enviou-me dois livros, um em prosa e outro em
verso.
Com
tantas biografias superficiais, mostrando pouco e escondendo muito,
dou de cara com sentimentos explícitos, profundos e filosóficos,
extraídos de maneira difícil, pelo teor, porém expressos com
claridade solar acerca das vivências de “um bichinho enjeitado”,
“uma órfã de mãe viva”. É natural a pressa em contar tudo, o
desejo de abreviar os grandes fatos e saltar os cantinhos da memória,
as melhores partes. Em Maktub, sem meandros, a melancolia da criança
que muda de casa, de vida e de nome – Lilia, Marizé, Zezinha -,
conforme o lugar onde precisa estar, se mostra inteira. Cada um a
chama do jeito que quiser, pouco importa. A menina pensa como adulto,
se desconsidera completamente, baseando-se no desprezo que o mundo
lhe dá, da pequenez e desimportância que tem, do monte de filhos
que há na casa, da sua pobreza pungente, de não ter para onde ir.
A
mãe é índia Xacriabá e nômade por imposição dos genes. A
menina Marijô não entende sua mãe, uma figura ensombrecida, de
idas e vindas, de não ter um por quê. O pai atravessa as matas com
gado de corte. E a menina anêmica de fome come terra. O mundo é
grande para uma criança cinzenta, que não existe, insignificante,
sem tamanho nem peso e que precisa cavoucar a parede para comer um
pedaço dela. Os pais se separam, e a mãe “vive de déu em déu”.
O irmão que a protegia vai trabalhar em São Paulo. A irmã Isabel,
um pouco mais velha, morre. Mas o destino redime Marijô e coloca em
sua vida um doce Anjo Negro, Alexandrina Christo, a Tia Xandu,
escrava alforriada, uma ex-mucama vendida pelo próprio pai e criada
numa família rica, nada menos que o Barão de Mamoré. É mulher
ilustrada, sabe Francês, aprecia literatura e participa de tardes
poéticas, tendo morado, anteriormente, em Ilhéus – BA, e agora
está em Minas. Sua situação financeira permite e ela leva por
companhia a menina, que vê abrirem-se as portas do saber. Tia Xandu
a coloca em contato com livros guardados em arcas e a presença de
Shakespeare e Machado de Assis passam ao seu convívio, influenciando
a sua maneira de falar e, anos depois, de pensar e escrever.
Nos
quintais, na igreja, nos saraus, nas revistas, nos livros, nos
filmes, nos passeios pelo cais do Rio São Francisco em Januária,
uma cidade portuária, cheia de estranhos e de mistérios, a vida lhe
é apresentada e o universo masculino é espreitado por quem
desconfia de tudo. Desamparada, é vista pelos homens com olhar de
lobos, uma presa fácil, mas, esperta, ela escapa. Tia Xandu perde o
direito a casa e vão morar de favor com a família de um capitão
reformado da PM, onde também está a madrinha de Marijô. Tão nova,
não entendeu a mudança, a perda de direitos, de espaço e de
status. Ali não encontra o carinho que recebia na casa de Tia Xandu,
para quem ela é só gratidão. Fica sem estudar, fazendo bordados e
flores, trabalhando no balcão, mas, depois de dois anos, retorna à
escola.
A
tal madrinha era professora do ensino fundamental, mas escrevia
errado, e, solteira, mas cuja luxúria a escravizava, dizia não ter
de aturar filhos dos outros. Ah, de discriminação, rejeição,
solidão e medo Marijô conhece de sobra e fala deles de maneira
crua. Acabar a leitura dá pena. Publicado em 2011, Maktub conta sua
vida até os 13 anos, quando Alexandrina se vai, aos 80 anos,
deixando a menina, rejeitada pela mãe, órfã pela segunda vez.
Pequena, frágil e sem dono, se ilustrou naquela oportunidade,
trazendo, anos depois, suas experiências existenciais. Quem tem o
privilégio de lê-la, aprende. Emocionalmente inteligente, Marijô
Rodrigues fez da vida madrasta uma mãe.
*
Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia
Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de
Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
Bacana, Mara. Leitura muito proveitosa, com certeza. Estava escrito que seria.
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