quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Maktub: Estava Escrito

* Por Mara Narciso
 
Dizer que o livro me chegou às mãos, que eu o devorei de um só fôlego, que a riqueza de detalhes impressiona, que me permitiu um mergulho na infância da autora, que só mesmo lendo para avaliar o conteúdo... Não, não e não! Não é nada disso. Quem é Marijô Rodrigues? Há escritores de boas obras que ficam conhecidos apenas em seu meio, ainda que exista a internet. O que melhor caracteriza Marijô é a humildade de quem passou a vida pedindo desculpas por ocupar um espaço que julga não ser seu, e claro, suas emoções ricamente desnudadas na escrita. No dia 16 de março de 2018 a autora completa oito décadas de vida. É membro efetivo da Academia Feminina de Letras de Montes Claros, mas, fatores de ordem prática a levaram da cidade. Nascida em Cônego Marinho - MG, antes distrito de Januária, foi para São José dos Campos – SP para ficar com os filhos. Timidamente, ela me mostrou poemas seus dissecados em doutorados na Unimontes. Depois, enviou-me dois livros, um em prosa e outro em verso.
 
Com tantas biografias superficiais, mostrando pouco e escondendo muito, dou de cara com sentimentos explícitos, profundos e filosóficos, extraídos de maneira difícil, pelo teor, porém expressos com claridade solar acerca das vivências de “um bichinho enjeitado”, “uma órfã de mãe viva”. É natural a pressa em contar tudo, o desejo de abreviar os grandes fatos e saltar os cantinhos da memória, as melhores partes. Em Maktub, sem meandros, a melancolia da criança que muda de casa, de vida e de nome – Lilia, Marizé, Zezinha -, conforme o lugar onde precisa estar, se mostra inteira. Cada um a chama do jeito que quiser, pouco importa. A menina pensa como adulto, se desconsidera completamente, baseando-se no desprezo que o mundo lhe dá, da pequenez e desimportância que tem, do monte de filhos que há na casa, da sua pobreza pungente, de não ter para onde ir.
 
A mãe é índia Xacriabá e nômade por imposição dos genes. A menina Marijô não entende sua mãe, uma figura ensombrecida, de idas e vindas, de não ter um por quê. O pai atravessa as matas com gado de corte. E a menina anêmica de fome come terra. O mundo é grande para uma criança cinzenta, que não existe, insignificante, sem tamanho nem peso e que precisa cavoucar a parede para comer um pedaço dela. Os pais se separam, e a mãe “vive de déu em déu”. O irmão que a protegia vai trabalhar em São Paulo. A irmã Isabel, um pouco mais velha, morre. Mas o destino redime Marijô e coloca em sua vida um doce Anjo Negro, Alexandrina Christo, a Tia Xandu, escrava alforriada, uma ex-mucama vendida pelo próprio pai e criada numa família rica, nada menos que o Barão de Mamoré. É mulher ilustrada, sabe Francês, aprecia literatura e participa de tardes poéticas, tendo morado, anteriormente, em Ilhéus – BA, e agora está em Minas. Sua situação financeira permite e ela leva por companhia a menina, que vê abrirem-se as portas do saber. Tia Xandu a coloca em contato com livros guardados em arcas e a presença de Shakespeare e Machado de Assis passam ao seu convívio, influenciando a sua maneira de falar e, anos depois, de pensar e escrever.
 
Nos quintais, na igreja, nos saraus, nas revistas, nos livros, nos filmes, nos passeios pelo cais do Rio São Francisco em Januária, uma cidade portuária, cheia de estranhos e de mistérios, a vida lhe é apresentada e o universo masculino é espreitado por quem desconfia de tudo. Desamparada, é vista pelos homens com olhar de lobos, uma presa fácil, mas, esperta, ela escapa. Tia Xandu perde o direito a casa e vão morar de favor com a família de um capitão reformado da PM, onde também está a madrinha de Marijô. Tão nova, não entendeu a mudança, a perda de direitos, de espaço e de status. Ali não encontra o carinho que recebia na casa de Tia Xandu, para quem ela é só gratidão. Fica sem estudar, fazendo bordados e flores, trabalhando no balcão, mas, depois de dois anos, retorna à escola.
 
A tal madrinha era professora do ensino fundamental, mas escrevia errado, e, solteira, mas cuja luxúria a escravizava, dizia não ter de aturar filhos dos outros. Ah, de discriminação, rejeição, solidão e medo Marijô conhece de sobra e fala deles de maneira crua. Acabar a leitura dá pena. Publicado em 2011, Maktub conta sua vida até os 13 anos, quando Alexandrina se vai, aos 80 anos, deixando a menina, rejeitada pela mãe, órfã pela segunda vez. Pequena, frágil e sem dono, se ilustrou naquela oportunidade, trazendo, anos depois, suas experiências existenciais. Quem tem o privilégio de lê-la, aprende. Emocionalmente inteligente, Marijô Rodrigues fez da vida madrasta uma mãe.

* Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”

 


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