quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

No ônibus depois da meia-noite



* Por Roberto Beltrão



Rapaz, já fui cobrador de ônibus, não sabe? Gostava de trabalhar à noite na linha do bacurau. Pegava às dez e largava de madrugada. Mas gostava. Nesse horário não tem calor, não tem empurra-empurra. Mais tranquilo. Era assim que eu acreditava… Ah, sou Ademário. Prazer!

Meu serviço era numa linha que passava pela Avenida Caxangá. Avenida rua comprida, viu? Quase seis quilômetros numa reta só. Durante o dia é bem agitado – carros, ônibus, caminhões e motos passando pra lá e cá. Muita gente nas calçadas ou atravessando as pistas.

Mas à noite, principalmente depois da onze horas, a Caxangá fica deserta. Nas paradas, só uma ou outra pessoa espera. A luz amarela que vem dos postes quase não dá conta de afastar a breu. E é um silêncio de cemitério – dá pra até ouvir a zuada de prego caindo no asfalto.


Pois bem: mesmo nesse lugar assim, soturno, tinha uma passageira que ficava sozinha num dos pontos, sempre perto da meia-noite. Uma senhora idosa, sentada tranquila no banquinho embaixo do abrigo. Era bem magra e meio curvada. Toda vez estava com um vestido preto até os pés, cabelo branco amarrado no alto da cabeça. Levava um guarda-chuva grande feito uma bengala.

Isso todas as noites. Ela chamava o coletivo, subia pela porta da frente, ficava bem quietinha num banco por trás do motorista. Comecei a me ligar. Reparava quando ela entrava. Depois notei que nunca via aquela senhora descer. Oxe! Onde, por Jesus, essa criatura desembarcava? E, com certeza, não ia até o terminal.

Uma vez, no fim do expediente, comentei o caso com Severo, o motorista. Ele também ficava de olho na tal idosa, sim. E já havia percebido que ela não desembarcava em nenhuma parada. Acreditava que era uma alma de outro mundo!
Severo, meu irmão, e você deixa malassombro circular no nosso carro?
Com espírito não se mexe, Ademário! Faz de conta que não vê, é melhor…

Pensa que me conformei? Arranjei um vidrinho de água benta com o padre na minha paróquia. Levei comigo para trabalho, bem guardadinho no meu bolso. Tinha o planejamento completo.

Quando chegou naquele mesmo ponto, a mulher subiu, andou arrastando os pés e foi para o banco do qual mais gostava. Então sai da minha cadeira. Fui bem caladinho, pisando macio pelo corredor do ônibus. Ela não me via, estava de costas, né? Quando cheguei bem perto da velha, sacudi a água benta e gritei:
Vai em paz, irmã! Volta pra luz!

A velha se virou para me espiar. O rosto era todo engelhado, os olhos fundos, o sorriso banguela. Com uma voz arranhada, falou alguma coisa que não consegui entender. Será que me rogou uma praga? E aí sumiu na minha frente, cara! Virou fumaça… Juro por Deus, amigo.

Aquilo foi demais. Pedi demissão no dia seguinte. O que eu faço agora? Vendo sapato numa loja do Centro. E não ando mais de ônibus nem que me paguem. Quando meu carro está na oficina, gasto meu salário todinho em táxi. Pelo menos acho que a praga da velha não pegou. O problema é que à vezes sonho com ela. A cara cheia de rugas, a boca murcha, o dedo magro apontando pra mim… Acordo todo suado. Credo em cruz!


* Jornalista e pesquisador, autor do livro de contos “Recife assombrado”.


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