quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Instintiva violência


A vida é marcada pela violência, característica que está inscrita em nossos genes como um dos nossos primitivos e mais onipresentes instintos. O nascimento é um evento violento, em que o novo ser é tirado (à revelia) do conforto do útero materno para a perigosa aventura de existir. E a morte? Nem é preciso destacar. É a violência das violências, mesmo que ocorra de forma “natural”. Tanto que nos reduz, instantaneamente, a um punhado de carne inerme, que em questão de horas começa a se decompor e apodrecer.

Boa parte dos animais – nós no meio – se alimenta de outros, que abate, sem piedade e contemplação, para prover a própria sobrevivência. A vida se alimenta de vida. Para que uns sobrevivam, faz-se necessário que outros, de outras espécies, pereçam (houve tempos, nem tão remotos assim, em que alguns humanos se alimentavam da carne de outros). E os animais que não são carnívoros nem assim se alimentam de coisas inanimadas. Sobrevivem, também, às custas de seres viventes, posto que vegetais.

Essa luta sem quartel pela sobrevivência sempre me incomodou, desde pequeno. Entendo que esta é a ordem natural das coisas e que jamais será alterada. Mas lá no íntimo, gostaria que não fosse assim. A inteligência e a sensibilidade que há em mim, ao se contraporem aos meros instintos, gostariam que tudo fosse diferente. Ou seja, que a nossa fonte energética, a alimentar, fosse de outra natureza. Qual? Sei lá! Que fosse, digamos, exclusivamente mineral. Mas não é.

Um dos “queridinhos da moda”, o escritor norte-americano Jonathan Safran Foer, jovem talento (tem 40 anos), que se consagrou com os romances “Tudo se ilumina” (transposto para o cinema) e “Extremamente alto & Incrivelmente perto”, livros que surpreenderam a crítica e o mundo editorial e se tornaram best-sellers, toca no assunto. Ele publicou nos Estados Unidos e na Europa (onde lançou em 2009), “Comer animais”, que a Editora Rocco lançou no Brasil em 2011. E tome surpresa.

Quando todos esperavam novo romance, já que os dois anteriores continuam vendendo até hoje rios e mais rios de exemplares, Foer decidiu escrever não-ficção. O livro é uma detalhada e bem fundamentada reportagem sobre a indústria da carne no mundo. Para que você tenha uma ideia da voracidade humana para devorar outros animais, basta informar que, apenas nos Estados Unidos, são abatidos mais de dez bilhões de espécimes por ano para alimentar os glutões e cada vez mais obesos norte-americanos.

O autor mostra como funciona a “linha de produção”, a forma metódica e sistemática de matar quer bovinos, quer suínos ou quer aves em seu país. E os Estados Unidos sequer são os maiores produtores mundiais destes três tipos de carne, primazia que há já bom tempo cabe ao Brasil.

Uma das experiências pessoais que Foer narra tem muito a ver com a minha própria, pessoal. Quando garotinho, de uns quatro anos de idade, eu adorava comer galinha com polenta, uma receita que minha mãe preparava bem como poucos. Naquela época, não me dava conta que aquela carne que tanto apreciava era proveniente de um ser vivo, daquelas aves que ciscavam no quintal e abasteciam a família de ovos. Não associava uma coisa à outra.

Fiquei horrorizado quando, certo dia, pilhei minha mãe cortando o pescoço de uma galinha bem gordinha. Foi aí que me caiu a ficha. Levei uns seis meses sem comer carne. Essa determinação, todavia, foi embora, com o passar do tempo e com a perda da inocência. Hoje, sou carnívoro dos mais vorazes, desses que não conseguem passar um fim de semana sem um lauto churrasco (como bom gaúcho que sou). E ao longo da semana, bifes acebolados são presenças obrigatórias no cardápio das refeições. Mas esse nosso aspecto animal, nem por isso, deixa de me incomodar. Vai incomodar sempre.

Foer narra que, quando garoto, era vidrado em galinha com cenoura, único prato que a avó sabia preparar. Quando fez a mesma descoberta que eu, ou seja, que se tratava de um ser vivo, teve reação parecida com a minha, posto que não tão radical. Recusou-se a comer carne, mas somente em público. Grande coisa! Depois... Bem, depois... Perdeu a inocência, assim como eu havia perdido, e passou a ser tão carnívoro, privada ou publicamente, como todo o mundo. Vegetariano? Nem pensar!

Em certo trecho do livro “Comer animais” Jonathan Safran Foer escreve: “Mark Twain disse que parar de fumar era uma das coisas mais fáceis de se fazer; ele fazia isso o tempo todo. Eu acrescentaria o vegetarianismo à lista das coisas fáceis”. Ou seja, daquelas que a gente larga centenas de vezes. E que retoma outro tanto, claro.

De qualquer forma, mesmo que apenas filosoficamente, já que nem eu, nem Foer e nenhum de vocês que me leem deixaremos de consumir carne apenas por causa dessas e de outras tantas considerações, o tema, da violência que a vida é, com o forte abatendo e devorando o mais fraco, ou o menos inteligente, não deixa de propiciar uma bela reflexão.

O jovem escritor norte-americano mostrou, sobretudo, que é meticuloso. Despendeu três anos nas pesquisas e escreveu um livro que, mesmo diferente de tudo o que havia escrito antes, não desmente, antes reforça, seu enorme talento, sua originalidade e criatividade e seu inegável jogo de cintura para encarar qualquer tema. Mas cá para nós: bem que as coisas poderiam ser diferentes e não ser necessário (e mais, ser até letal), vida alimentar-se de vida. Pensem nisso durante seus churrascos de domingo, regados de cerveja estupidamente gelada.

Boa leitura!

O Editor.


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Um comentário:

  1. Sou uma carnívora que de vez em quando se vê dando algumas filosofadas a respeito de comer um cadáver.

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