quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Inconsciente coletivo?


Um dos tipos de enredo mais fascinantes de se ler – em romances, contos, novelas ou mesmo em peças de teatro ou roteiro de cinema – é o que mistura personagens históricos que de fato existiram, e que marcaram seus nomes na memória dos povos, por todas as gerações que se sucederam à sua morte, com outros fictícios, criados pelo autor. É uma literatura, porém, das mais complicadas de se fazer, pois implica em muita pesquisa (de cenários, vestimentas, falas etc.) para conferir verossimilhança à história narrada.

São inúmeros os livros com essas características, tantos que se torna redundante citar algum. Certamente o leitor terá em mente, e sem precisar pensar muito, vários deles. Há tempos, por exemplo, venho ensaiando escrever um conto (cujo enredo tenho na pontinha da língua), tendo por cenário a cidade de Pompéia e por época, a da véspera da erupção do Vesúvio que arrasou (assim como a Herculano) essa localidade romana.

O que está me travando são os detalhes sobre como os pompeianos viviam, como eram suas casas, qual sua maneira de falar, vestir, proceder, quais os assuntos de que tratavam em conversas informais etc. Com paciência, tenho certeza, a história vai sair, no seu devido tempo.

Alguns livros com essas características são tão detalhados, os textos são tão naturais e espontâneos, que nos fica, até, a impressão que o autor testemunhou os fatos históricos que fazem o pano de fundo de seus enredos. Há quem atribua tamanha precisão ao que o célebre psicanalista Carl Gustav Jung chamou de “inconsciente coletivo”.

Esse eminente cientista suíço, que devassou a alma humana em busca de explicações do porque das nossas atitudes e reações, levantou a tese de que determinadas lembranças de nossos ancestrais seriam transmitidas à sua descendência (no caso, nós) nos próprios genes dos descendentes.

Isso explicaria a sensação que às vezes temos, diante de determinadas paisagens, por exemplo, de que já estivemos num certo lugar, para onde na verdade nunca fomos antes, ou que vivemos certos dramas dos quais acabamos de tomar conhecimento, mas que nos parecem sumamente familiares. Seria isso? Até pode ser! Atribuo, porém, essa precisão narrativa, basicamente, ao talento dos escritores.

Querem um exemplo mais específico desse tipo de enredo em que parece que o autor presenciou o fato histórico que lhe serve de pano de fundo ou conheceu pessoalmente o vulto histórico, do qual traça o perfil? Cito o conto “Um lugar para passar a noite”, de Robert Louis Stevenson (programado para oportuna publicação em nossa coluna de finais de semana intitulada “Clássicos”).

Nele, o autor de “O médico e o monstro” fala do poeta maldito, François Villon, com tanta naturalidade, que nos deixa a impressão de haver convivido com ele. Óbvio que não conviveu. Afinal, cerca de sete séculos separam o nascimento de um e de outro. Além de não serem contemporâneos, sequer eram conterrâneos. Villon era francês. Stevenson, por seu turno, nasceu na Inglaterra. A impressão que fica, contudo, é a de que os dois foram não apenas da mesma época, mas principalmente amigos íntimos.

Aliás, sobre o famoso poeta-bandido, recomendo-lhes a leitura de “Balada dos enforcados e outros poemas”. Dessa forma, poderão conhecer a genialidade de uma das mais estranhas e contraditórias figuras de toda a literatura mundial, sobre a qual escrevi o equivalente a um livro, pelo fascínio que me desperta. Teria convivido com Villon? Impossível. Algum ancestral meu conviveu? Improvável! Seria fruto do “inconsciente coletivo”? Quem sabe?

A propósito do livro recomendado, ressalte-se a primorosa tradução (e dizer isso chega a ser até redundante face à sua reconhecida competência) de Péricles Eugênio da Silva Ramos. A obra poética de Villon foi lançada em 2008 pela Editora Hedra.

Outro livro, nessa mesma linha, que recomendo sem titubear, é “Os melhores contos que a história escreveu”, antologia organizada por Flávio Moreira da Costa, que também redigiu as notas, com a colaboração de Celina Portocarrero.

É de se notar o quadro de tradutores, composto por Adriana Lisboa, Celina Portocarrero, Leo Schlafman, Luís Carlos Cabral, Maria Luizas X. de A. Borges, Domingos Zamagna, Boris Schnaiderman, Berenice Xavier, Aleksandar Jovanovic, Marcelo Backes e o próprio Flávio Moreira da Costa. São 557 páginas da melhor literatura, com o reconhecido padrão de qualidade da Editora Nova Fronteira.

Aliás, o melhor conto que li, tendo François Villon por personagem, foi escrito por um escritor norte-americano um tanto quanto obscuro (tanto que sequer me lembro seu nome), que publicou a história não em livro, mas na revista “Mistério Magazine de Ellery Queen”, que colecionei por cerca de cinco anos.

Procurei feito um doido o exemplar em que a história está inserida, mas minha biblioteca está um caos (uma desgraça!), tem excesso de volumes e todos sem guardar nenhuma ordem lógica. Faço questão, porém, de, assim que encontrar o texto, escrever uma crônica inteira a respeito, até por questão de justiça.

Boa leitura!

O Editor.



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