domingo, 3 de dezembro de 2017

Gênio reverencia gênio


O escritor Monteiro Lobato, cuja genialidade não se discute e é até desnecessário citar (por ser considerada, hoje, consensual, embora nem sempre tenha sido assim), era admirador profundo de uma personalidade artística norte-americana, à qual muito intelectual torceu o nariz (muitos ainda torcem), mas que o criador do “Sítio do pica-pau amarelo” considerava “um gênio”. Refiro-me a Walt Disney. Também sempre o encarei como tal. Ou seja, como artista que extrapola em muito o senso comum e incomparável em sua especialidade.

Lobato expressou todo seu entusiasmo pelo criador de Mickey Mouse, Pato Donald e outros tantos personagens, tornados imortais, em uma crônica intitulada “Fantasia!”, publicada no jornal “Folha da Noite”, do grupo “Folha”, hoje extinto. Mesmo não considerando o conteúdo (e este é, sim, para ser considerado), o texto, por si só, tem caráter histórico. Sua publicação ocorreu no dia 12 de julho de 1948, oito dias após a morte do autor, ocorrida no dia 4 desse mês e ano. Não se sabe se foi escrito na véspera da morte ou bem antes. Mas foi um dos últimos produzidos por Monteiro Lobato.

Em determinado trecho da citada crônica, o autor afirma: “Disney é um tipo novo de gênio e sua arte é um a arte total e absolutamente nova, jamais prevista nem pelas mais delirantes imaginações”. Claro que concordo com essa opinião de um dos nossos mais lúcidos, imaginativos e, por consequência, criativos escritores brasileiros. Quem sou eu para discordar de tão ilustre figura.

Creio que Walt Disney, se conhecesse Emília, Dona Benta, Pedrinho, Narizinho, Tia Anastácia e os demais personagens de Lobato, diria o mesmo, ou quem sabe até mais, a respeito do genial escritor tupiniquim. Afinal, um gênio, via de regra, sabe reconhecer (e reconhece) e reverenciar (e reverencia) outro, ao contrário de pessoas mesquinhas, que se julgam grandes artistas, sem que, de fato, sejam. Em outro trecho da aludida crônica, Monteiro Lobato justifica, numa única linha, a razão de sua admiração e entusiasmo. Escreve: “Disney criou a grande coisa nova: a conjugação da fotografia com a imaginação”.

Esse criativo desenhista é parte inseparável da minha infância. Mas não foi o primeiro do gênero que admirei. Essa primazia cabe a um brasileiro, igualmente genial, contudo nunca reconhecido devidamente, como merecia. Trata-se de Luiz Sá. Durante anos – dos seis aos onze de idade – diverti-me com o trio de personagens que criou – Reco-Reco, Bolão e Azeitona – “astros” da revista “O tico-tico”, outro fenômeno, em se tratando de Brasil, já que circulou de 11 de outubro de 1905 (uma quarta-feira) até meados da década de 70 do século passado.

Essa tríade originalíssima encantou, pois, tanto a geração anterior à minha, quanto à posterior. E à minha, evidentemente. A primeira vez que li as aventuras desses três foi em 1949 e fiquei fascinado, basbaque, sem fala. Luiz Sá, é mister que se diga, não se limitou a esse trabalho gráfico. Foi funcionário, também, do extinto Serviço Nacional de Educação Sanitária, criado em 1941 pelo então presidente Getúlio Vargas, ilustrando livros e folhetos em profusão sobre saúde pública. Tinha um traço inconfundível e, com todo o respeito que tenho por outros desenhistas e cartunistas, nenhum outro, jamais, sequer se aproximou da qualidade que ele imprimiu ao seu trabalho. É aqui que cabe minha reclamação de que nem sempre os artistas realmente talentosos são injustiçados e não contam com o devido reconhecimento.

Para que vocês tenham uma ideia da sua capacidade artística e profissional, basta dizer que, em 1939 (quando faltavam, ainda, quatro anos para eu nascer), Luiz Sá criou os bonequinhos das críticas de cinema do jornal O Globo. Passados 78 anos, eles ainda são, rigorosamente, os mesmos, comprovando que os bons trabalhos são atemporais e, se bobear, eternos. Esse genial desenhista contraiu, em 1974, tuberculose, doença que findou por matá-lo cinco anos depois, em 1979.

Mas, voltando a Lobato e à sua histórica crônica “Fantasia!”, ele afirma, com todas as letras, nas linhas finais do texto: “Ah, se fosse possível um novo Fiat! Recriar o mundo! Com o material que a natureza nos fornece produzir um mundo novo, formas novas de vida – e se fosse Walt Disney o encarregado da transmutação! Que suprema, que prodigiosamente bela uma nova Criação Cósmica assinada pela mais alta expressão do gênio humano – Walt Disney!”. Concordo, mais uma vez, com Lobato. Somente aduziria, incluindo como parceiro desse novo Fiat lux, a figura, a meu ver injustiçada pela falta de memória do brasileiro, de Luiz Sá.

Ah, ainda a propósito da revista “O tico-tico”, é mister que se diga que foi a verdadeira apresentadora da obra de Walt Disney ao Brasil. Isso ocorreu em 1930, com uma aventura de Mickey Mouse que estampou em suas páginas. Só que inicialmente, entre nós, esse personagem tinha outro nome, abrasileirado: foi chamado de “Ratinho Curioso”. “O tico-tico” contou tanto com leitores célebres, como Ruy Barbosa e Carlos Drummond de Andrade (entre outros), quanto muitos nem tão famosos assim (mas, quem sabe, que um dia poderão sê-lo, vá se saber), como este curioso e às vezes trapalhão Editor.

Boa leitura!

O Editor.


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Um comentário:

  1. Lembrei-me da Turma do Pererê, com Tininho e a Onça de Ziraldo. Eu gostava muitos desses quadrinhos, num tempo em que era muito pequena ainda.Era tirinhas em "O Cruzeiro" que meu pai comprava. Depois vieram as revistas em quadrinhos que aqui não se chamavam Gibi. Eu não sabia ler e minha mãe lia para gente, apontando os balões. Eram Bolinha e Luluzinha. Isso despertou em mim o prazer de ler, antes mesmo de saber.

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