sábado, 16 de dezembro de 2017

Carta a Iepê


* Por Risomar Fasanaro


São Paulo, 13 de dezembro de 1968
Iepê, amigo meu distante.

A saudade é grande e a esperança de lhe rever, cada vez menor. Estou lhe escrevendo para dizer que 3 xícaras de farinha de trigo, 2 ovos, 1 xícara de açúcar e 4 colheres de margarina, ou óleo Luz. Mas não estamos desesperados, assim que misture tudo muito bem, bata bastante sobre a mesa polvilhada de farinha, até que você sabe como são essas substâncias, forme-se uma massa uniforme.

Coloque fermento e, por último as coisas continuam do mesmo jeito. Quando a gente pensa que vai melhorar, leve-a ao forno brando, e não abra o forno pois se entrar ventilação, antes de a massa obter o crescimento necessário, o pão poderá ficar perdido, a massa não conseguirá mais crescer. Você terá de preparar outra.

Ah...imagine que houve uma reunião, e muitas coisas foram discutidas, entre elas que um pouco de uvas passas embebidas em licor, que sempre coloco sobre o pão, mas o pessoal nem notou. Achou o gosto meio esquisito, mas nem percebeu o que era. Acho que foi por causa do jogo do Corinthians. 1 xícara de leite, 6 bananas amassadas, 8 gemas.

Todos nós assistimos ao jogo pela televisão, nem sabíamos direito o que estávamos comendo, queríamos era que nosso time ganhasse. Acendi até uma vela, e acho que os santos ajudaram.

Sabe, hoje foi um dos dias em que mais senti saudade de você. Lembrei muito daquela bandeira enorme do time, que você trouxe aqui em casa pra me mostrar, antes de ir pro Pacaembu. Lembra-se? Ele estava quase ganhando o campeonato, mas sofreu mais uma derrota. Dá raiva quando me lembro. Você esperou tantos anos aquela vitória, e quando ela aconteceu você estava tão longe...

Agora que estão as armas e os barões assinalados isso não tem nenhuma importância que da Occidental praia lusitana,/por mares nunca dantes navegados,/ Passarão ainda além da Trapobana,/ E em perigos e guerras esforçados/ Mais do que prometia a força humana/ Entre gente remota edificarão/ Novo reino, que tanto sublimarão,/

Puxa...Mas este nó no peito, esta garganta ferida, isso não tem jeito mesmo. Essa vontade de sair à noite, conversar, ver as gaivotas na praia, aqueles lírios no meio do mato, sem saber quem plantou...Tão brancos, tão lindos, porque há sempre uma esperança quando a gente sabe que alguém ainda planta flores no meio do mato, ou, quem sabe, nasceram espontaneamente...

As flores não têm esse medo tão grande que sinto todos os dias de 5 colheres de fubá, ½ pacote de queijo ralado, 2 xícaras de chocolate em pó, e esta saudade que de tamanha se mistura com a de outras pessoas, como as lembranças que ouvi de um caçador que ficou horas e horas dentro de uma mata, meio deitado, meio escorado a um tronco de árvore, vendo uma orquestra de tangarás que tocava e dançava.

Tão organizadinhos, me dizia ele, que havia orquestra e dançadores e tudo, e que de tanto dançarem, a casca do galho já não existia, e enquanto ele me contava tudo aquilo eu sentia saudade por ele e por mim, e mais ainda: saudade de você.

É como se um dia a gente tivesse sido uma espécie de tangará que tivesse dançado muito, e por isso morresse um pouco. Acho que as árvores não vivem muito quando lhe tiram as cascas. Também os tangarás você não acha?

Quando meu Deus, vou poder rever você? Talvez nunca. Porque mesmo que um dia volte, não seremos as mesmas pessoas. Tantas somas de tantas tristezas, que mais dariam que uma tristeza maior?

Eu sei que aí é muito frio. Dou razão a você de não gostar, porém, mais fria, Amigo, é a terra em que, mesmo havendo sol, a alma não se aquece. E quando se aquece é por pouco tempo. É como um champagne que ferve, borbulha, sob uma aparência gelada que é forçada a assumir.

Passamos o limite aonde chega
O solo que para o Norte os carros guia,
Onde jazem os povos a quem nega
O filho de Clymene a cor do dia
(Camões, Luís de- Os Lusíadas- Canto V vs. 49 a 52)

Madrugadas e madrugadas que escrevo a você. Cartas que não envio. Não envio nunca. Isso no entanto me recheia o peito como um licor recheia um bombom. Não pra que saiba de nada, mas como uma forma de aquietar essas águas dentro de mim que não dormem nunca. Inútil. Na verdade só me faz sentir mais e mais esta angústia que não sei até quando vai durar.

Às vezes me olho no espelho, e sinto que em alguma das vezes em que saí, me trocaram por outra que não conheço. Mas à noite, quando de novo me encontro, vejo que é assim mesmo, e que só o espelho me diz a verdade em seu silêncio.

Uma noite dessas sonhei (adivinhe com quem?) com você, é claro. O dia estava azul e você vestia uma camisa vermelha de mangas curtas. Corria pra te abraçar, mas me lembrava de que não podia. Atos e fatos nos separavam. O sonho se dividia em atos. Isso é tão engraçado, não é? No quinto você partia.

Ficava-nos também na terra amada
O coração, que as mágoas lá deixavão;
E já depois que todo se escondeo,
Não vimos mais em fim que mar e ceo.
(Camões, Luís de- Os Lusíadas - Canto V vs 21 a 24)


(Trecho do conto “Carta a Iepê” do livro de contos “Os Samurais praticam Harakiri”- ainda não publicado).

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora,  autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro..


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