sexta-feira, 17 de novembro de 2017

O que eu ganho com a literatura, professor?


* Por Urariano Mota



Esta semana, participei do Projeto Outras Palavras, que a Secretaria de Cultura e Fundarpe realizam em Pernambuco. Esse é um projeto que leva escritores para conversar com alunos da rede pública sobre literatura. Para mim, foi uma experiência fundamental.


O colégio aonde fui, a Escola de Referência em Ensino Médio Maria Vieira Muliterno, no Alto da Bela Vista em Abreu e Lima, é uma vitória de educadores e alunos. Ainda não posso escrever sobre o que vi e senti no Maria Vieira Muliterno. Por enquanto, sou incapaz de falar do ânimo de alma dos estudantes com quem conversei. Mas bem posso retomar uma experiência semelhante, que não teve a alegria desta semana.

Nos tempos em que pensei ser professor, sempre tentei dizer a jovens estudantes que a literatura era fundamental na vida de todos. Mas quase nunca tive sucesso nessas arremetidas rumo a seus espíritos. Minhas palavras pareciam não fecundar. Primeiro porque a literatura ministrada a eles, em outras aulas, destruía todo o gozo de viver. Os mestres, profissionais ou burocratas, ensinavam-lhes a anti, a literatura para antas, com listas de nomes, datas e resumos de obras, nada mais. Em segundo lugar eu não fecundava porque o valor do sentimento, o sentido de uma rosa, o cântico de amor ou o desajuste de pessoas em uma sociedade corrupta nada significava para as tarefas mais práticas que se impunham.
O que eu ganho com a literatura, professor?


E com isso, o jovem, quando de classe média, queria me dizer, que
carro irei comprar com a leitura de Baudelaire? Que roupas, que tênis, que gatas irei conquistar com essa conversa mole de Machado de Assis? Então eu sorria, para não lhes morder. A riqueza do mundo das páginas dos escritores, a gratidão que eu tinha para quem me fizera homem eu sabia. Mas não achava o que dizer nessas horas quando o petardo de uma frase de Joaquim Nabuco ganhava a zombaria de toda a gente. Eu sorria e me punha a gaguejar coisas estapafúrdias do gênero os poetas são os poetas, Cervantes era Cervantes. E me calava, e calava a lembrança dos sofrimentos e humilhações em vida do homem Cervantes que dignificou a espécie.
O que eu ganho com a literatura, professor?

Quando essa pergunta me era feita por jovens da periferia, excluídos, isso me ofendia muito mais que a pergunta do jovem classe média. Aos de antes eu respondia com uma
oposição quase absoluta, porque não me via em suas condições e rostos. Mas aos periféricos, não. Eu passava a ser atingido nos meus domínios, na minha gente, porque eu olhava os seus rostos e via o meu, no tempo em que fui tão perdido e carente quanto qualquer um deles. Então eu não sorria. Aquilo, do meu semelhante, me acendia um fogo, um álcool vigoroso, e eu lhes falava do valor da literatura com exemplos vivos, vivíssimos, da minha própria experiência. Então eu vencia. Então a literatura vencia. Mas já não tinha o nome de literatura. Tinha o nome de outra coisa, algo como histórias reais de miseráveis que têm a cara da gente. Que importa? Que se dane o nome, vencia a literatura.

Vencia a qualidade maior da literatura: libertar nos brutos que somos o nosso melhor humano. É algo muito mais precioso, e eterno enquanto houver humanidade, do que tirar uma nota 1.000 na redação do Enem. Ou, se quiserem, pode ser criado até um
anúncio prático de comercial: com a literatura virem humanos, e ganhem uma nota mil para toda a vida.

Mas por enquanto sobre o Maria Vieira Mulierno ainda não posso falar.


* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros




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