terça-feira, 14 de novembro de 2017

Amor, gênese e rumos

* Por Rubem Costa

Uma rosa à margem da estrada.

O ódio chegou bem mais tarde. Quando Caim matou Abel, a terra já era redonda e girava em torno do sol, embora ninguém ainda o soubesse. Como também se ignorava ser o rancor, que a inveja gerou, produto adquirido que marca a degradação do ser. Todavia, ao avesso, sentimento inato, o amor vem de um tempo imemorial que se perde na distância das eras. Intuitivo, estava incrustada no espírito do Criador no instante surpreendente em que teve a ideia mágica de inventar o mundo.
A Bíblia conta — todos sabem, está no Gênesis — que, dividindo seu trabalho em etapas, Deus preliminarmente iluminou o espaço, fazendo surgir o sol, a lua e as estrelas, enquanto laboriosamente articulava a habitação da terra. Aconteceu que, vendo os pássaros a cantar no arvoredo, o rato que morava nas moitas (nem suspeitava de políticos), o leão e o tigre percorrendo as selvas, o criador alegrou-se, porém não ficou satisfeito. E no sexto dia, sentiu que ainda faltava alguma coisa, algo mais importante de que tudo aquilo que a sua onipotência até então gerara. Alguma coisa capaz de traduzir em forma a sua imagem e ser em espírito a sua semelhança. Pensava diante do espelho. Foi daí que lhe ocorreu a ideia última.
Artista supremo, colhendo o pó da terra, moldou o bípede que (mal sabia) lhe iria dar muitas dores de cabeça, mas ao qual desde o primeiro instante amou ternamente, tanto que não querendo vê-lo estático, insuflou-lhe pelas narinas o sopro do movimento. Confidencia o Gênesis que “o homem transformou-se em um ser vivo”.
É a intensa manifestação exterior do amor divino que transborda imensurável sobre o ser minúsculo que retirara do nada, para, soprando-lhe nas ventas, premiá-lo com o supremo bem terreno: a vida. É um ato indimensionado: transformar o mísero pó em um ente revestido de consciência e discernimento, com direito de dar nome às árvores, às flores, aos regatos e aos animais que o rodeavam. Mesmo assim, Deus descobriu que bípede estava triste e inquieto. Era a angústia de estar sozinho no Paraíso, ele Adão, dono de tudo, sem ninguém ao lado. Então, Jeová se apiedou do solitário, que não reclamava, mas interiormente chorava, porque solidão é grito que não se ouve, porém ressoa no coração. E por isso, conta o Velho Testamento, para tirá-lo da aflição, prostrou-o em profundo dormir. Era o grande, o enorme gesto de amor, pois lhe estava dando a faculdade de sonhar, desprender-se materialmente de si mesmo em busca de horizontes ignotos. Estágio supraterreno que Mauro Sampaio, o poeta, assim define:

Sonhei ser, mas não sou.
O universo está ausente
Quando se é de verdade”.


Eis aí, naquele minuto onírico, em que se transportava para paragens etéreas, o sofrido Adão, que pensava ser, já não mais era solitário, porque se derruíra o universo da soledade. Num universo presente, trazia agora dentro de si a esperança, irmã do sonho e sustento da vida. Por isso, o Criador que, em um só dia proporcionara a forma, o bem da existência e o direito de sonhar, haveria de lhe emprestar também a benção de amar. Vejamos de novo a saga conhecida que nos conta o Gênesis: — “Então o Senhor Deus adormeceu profundamente o homem; e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das costelas, cujo lugar, porém, encheu de carne. Da costela que retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher e conduziu-a até o homem, o qual ao vê-la o exclamou: Esta é, realmente, osso de meus ossos e carne da minha carne”.

Chamar-se-à mulher, disse o Senhor, visto ter sido tirada do homem. “Por esse motivo, este deixará o pai e a mãe, para se unir a ela, e os dois serão uma só carne”. Com pedido de perdão aos teólogos de plantão pela invasão de domicílio, constata-se na simbologia descritiva que o escriba do Gênesis, acima de tudo, quis trazer à superfície a força perceptiva do amor. Pois, Deus que fora oleiro ao moldar Adão, poderia, se quisesse, ter continuado artesão, tirando da terra também a mulher. Mas não, transbordando em magnanimidade, penetra com afeto no coração do homem e, cirurgião supremo, retira-lhe do corpo a essência de uma nova vida que, osso de seus ossos, irá andar a seu lado, parceira imensurável, na peregrinação eterna da existência. Eis aí, Deus que em doação oferecera ao homem todo o seu amor divino, lhe infunde agora no coração a graça imensurável de também amar.

Começa aqui uma semântica nova. É o homem abdicando do amor paterno e se desfazendo do amor filial, para com afeto e ânsia de afeto, numa simbiose de êxtase, fundir sua alma com a da companheira que, antes de ser, já morava no seu coração. No desenvolvimento da história bíblica, nem sempre há uma seq
uência lógica, mas se descobre claro na metáfora que homem e mulher guardavam a grandeza divina do amor rotulado de edênico, porque traziam dentro de si a sublimidade da criação, tanto que, conta o Gênesis, estavam ambos nus e não sentiam vergonha. Uma figuração comovente: o amor como lastro da mais angelical pureza.

Pureza que ainda hoje pode medrar, desafiando a Sodoma dos tempos novos. É oblação do ser que no tumulto da multidão anônima caminha silencioso sem nada pedir para si, mas é capaz de procurar na margem da estrada uma rosa, ainda que seja simples e modesta, mas uma rosa rubra de vida para oferecer à companheira que a mão lhe aperta na singeleza de doce afeto. Instante sublime que há muito se vai escoando da história do homem, mas, quando acaso acontece, é sublimação da vida, redenção do ente que o Criador desenhou para ser sua semelhança.

Síntese da essência pura que se consagra nas sagas de Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, Heloisa e Abelardo. Expressão de inocência que dignifica ao ser e explica o sentido humano da vida.



* Escritor e membro da Academia Campinense de Letras.

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