quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Rio São Lamberto de ontem e hoje

* Por Mara Narciso
 
Quando alguém menciona a infância maravilhosa imaginamos que a mente infantil se confunde e traduz, anos depois e de forma exagerada, algo que foi apenas bom. Boa era a natureza, um presente para uma criança enjaulada num pequeno apartamento no centro da cidade e que fazia piqueniques nos arredores de Montes Claros com seus pais, tios e primos. O destino era o Rio São Lamberto, na região do Pentáurea Clube.
 
Muito cedo no domingo, para reduzir a bagagem, a comida era levada semipronta, com a panela amarrada pela tampa com um pano de prato. O meio de transporte era a Kombi de Tio Zé. Nela se amontoavam Tia Ninha, Virgínia, Vânia e Júnior, meus pais Alcides e Milena, meu irmão Helder, os mais frequentes, mas os tios Chico, Áurea e Dida, também iam. Juntávamos até treze pessoas no carro. Motor traseiro, mesmo sem carteira (precisaria de um carro adaptado, inacessível), Tio Zé ia dirigindo pela estrada de terra. Os homens iam no banco da frente, as mulheres no segundo banco e as crianças atrás. As comidas ficavam empoleiradas no colo de alguém ou dentro de cestas de taquara. As cervejas iam geladas e no destino eram deixadas dentro do rio. Nenhum charme, apenas farofeiros.
 
A viagem era de uns 20 km, mas, para nós, os meninos, era demorada, sendo uma aventura no meio da poeira e das cantorias, num converseiro de gritos e risadas. E a emoção da chegada? Uma curva na descida e lá estava o Rio São Lamberto, caudaloso, com poços, lajes e corredeiras borbulhantes. A água era gelada e cristalina, cheia de piabas. A estrada atravessava o rio, e não se via qualquer detrito. De roupa de banho e com um adulto ao lado, colocávamos os pés na água. Que delícia! Tínhamos aulas de natação na Praça de Esportes, mas minha mãe não tirava os olhos nem os gritos de cima da gente.
 
Num descampado à margem, sobre areia clarinha, os homens, só de calção, ensaiavam uma pelada, porém sem regras nem trave. Era apenas uma brincadeira e as mulheres também fingiam jogar bola. Árvores frondosas faziam sombra, jogando folhas amarelas na água, com bichinhos de vários tipos, que eu coletava.
 
Menino quer é sumir no meio do mato. Não tinha perigo, nem medo do sol e a gente pegava uma trilha com algum adulto e desaparecia catando pequi, cagaita, coquinho, mangaba e outros do cerrado. Pegávamos gravetos cobertos de musgos, como também ninhos de passarinhos. Tirávamos os ovinhos sem nenhum pudor. Ninguém pensava que fosse errado.
 
As mulheres terminavam de fazer a comida em fogões de pedra improvisados, mas de olho nos meninos, em revezamento. Comíamos rápido (o arroz era papento e cheirando a fumaça) para não perder um minuto do rio. Perto dali tinha muitas nascentes, com riozinhos correndo para todo lado. Próximo, havia uma área extensa, de areia vermelha, com água rasa e transparente. Não se via chão pelado, apenas pequenas áreas para plantar ou criar gado. O terreno adiante era de cascalho, com pés de abacaxi, manga e jabuticaba nas fazendinhas perto. Os cachorros latiam, e os moradores eram pessoas simples, com as quais fizemos amizade. Fomos muitas vezes naquela água que encobria um homem, num rio-saudade onde encontrávamos outras famílias se divertindo.
 
Uma sequência de crimes ambientais gravíssimos, como desmatamento do Morro Vermelho para tirar areia e cascalho resultou em tragédia e desolação. Pelado, o morro desceu e entupiu a calha do Rio São Lamberto que jaz morto. Sua nascente é em Bocaiúva, passa por Montes Claros, recebia água de várias nascentes na região do Pentáurea e ia irrigar o Rio São Francisco. A Lagoa do Pentáurea, que é fruto do seu represamento, também se entupiu. Na sua revitalização foram retiradas quatro mil caçambas de terra, o canal do rio foi restaurado, mas em pouco tempo já estava outra vez assoreado. Medidas de contenção no morro não superam a sanha por destruição de pessoas, que jogam, inescrupulosamente, terra até dentro do leito do rio.
 
Vendo a situação de hoje, e de antes, não tem como não falar que a infância foi boa. A natureza era viva, e nós a destroçamos. Nós, pequenos, pensávamos que o Rio São Lamberto seria eterno. Eterna é a irresponsabilidade humana. E com seca tudo fica ainda mais dramático.



* Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade



2 comentários:

  1. O saudosismo justifica-se com a triste realidade. Abraços, Mara. E melhor sorte para o nosso Sudeste nesta época de chuvas...

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  2. Seca e incendiário enlouquecido. O norte de Minas está precisando de água e sensatez.

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