sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Ateísmo


* Por William Somerset Maugham


- Mas porque razão haverias tu de estar com a verdade, enquanto estariam erradas criaturas como Santo Anselmo e Santo Agostinho?
-- Queres dizer que eles foram homens inteligentes e cultos, ao passo que alimentas grandes dúvidas quanto aos meus predicados intelectuais, não é assim?
-- É -- respondeu Philip num tom de incerteza, pois feita daquela forma sua pergunta parecia impertinente.
-- Santo Agostinho acreditava que a terra fosse chata e que o sol girasse em torno dela.
-- Não vejo o que isso possa provar.
-- Ora, prova que cada um tem as crenças de sua geração. Teus santos viveram numa era de fé, quando era praticamente impossível deixar de acreditar em coisas que hoje nos parecem positivamente inacreditáveis.
-- Então como sabes que agora estamos com a verdade?
-- Mas, eu não sei!
Philip refletiu um instante e volveu:
-- Não vejo razão para que as coisas em que acreditamos presentemente não sejam tão errôneas como aquelas em que se acreditava no passado.
-- Nem eu.
-- Então como podes acreditar no que quer que seja?

--Não sei dizer.
Philip perguntou a Weeks o que achava da religião de Hayward.
-- Os homens sempre imaginaram os deuses segundo sua própria imagem -- disse Weeks. -- Hayward acredita no pitoresco.
Após pequena pausa Philip observou:
-- Afinal, não compreendo por que se deva acreditar em Deus.

Mal as palavras lhe haviam saído da boca, concluiu que não tinha mais fé.

Perdeu o fôlego de repente, como se houvesse mergulhado em água fria. Voltou-se para Weeks, com os olhos espantados, e de súbito teve medo. Na primeira oportunidade despediu-se do amigo. Queria estar sozinho. Era a coisa mais extraordinária que já lhe tinha acontecido. Tentou refletir; aquilo era emocionante, uma vez que o caso parecia interessar toda a sua vida (julgava que qualquer decisão nesse terreno alteraria profundamente o curso de sua existência) e um erro poderia conduzir à condenação eterna.

Quanto mais refletia, porém, mais reforçava a sua convicção, e embora durante as semanas que se seguiam devorasse livros de tendências cépticas, não o fez senão para confirmar aquilo que sentia instintivamente. O fato é que cessara de acreditar não por esta ou aquela razão, mas porque lhe faltava o temperamento religioso. A fé lhe fora incutida do exterior. Era uma questão de ambiente e 
exemplo. Novo ambiente e novo exemplo proporcionavam-lhe agora, a oportunidade de encontrar-se a si próprio.

Descartava-se facilmente da crença que alimentava em criança, como uma capa de que não mais necessitasse. A princípio a vida lhe pareceu estranha e solitária sem a fé que, embora nunca o tivesse percebido, representava um apoio infalível. Sentia-se como um homem que, costumado a andar apoiado ao bastão, fosse de repente compelido a dispensá-lo. Parecia realmente, que os dias eram mais frios e as noites mais tristonhas.

A novidade da sensação animava-o, entretanto, parecia transformar-lhe a vida numa aventura emocionante. Em pouco tempo, o bastão que jogara longe e a capa que lhe caíra dos ombros assemelhavam-se a um fardo insuportável de que tivesse sido aliviado. As práticas religiosas que durante tantos anos lhe foram impostas afiguravam-se-lhe partes integrantes da própria religião. Lembrou-se das coletas e epístolas que fora obrigado a
decorar, e dos prolongados ofícios na Catedral, a que assistia sentado, com as pernas e os braços a ansiar por movimento. Lembrou-se das caminhadas à noite, através de estradas lamacentas, em demanda da matriz de Blackstable, austero e desolado edifício. Oh! Como aquilo tudo o enfastiava! Seu coração saltava de alegria ao ver que agora estava livre daquelas maçadas.

Admirava-se de se ter desvencilhado da crença com tanta facilidade e, ignorando que tudo tivera origem nos processos sutis de sua natureza íntima, atribuía à sua própria faculdade de raciocínio a convicção inabalável a que chegara. Experimentava grande contentamento. Com a falta de simpatia que a mocidade revela por atitudes diferentes da sua, Philip desprezava Weeks e Hayward por se contentarem com a vaga noção a que davam o nome de Deus, sem coragem de darem o passo final que a ele pareceu tão simples.

Certo dia subiu, sozinho a uma colina para descortinar uma vista que, não sabia por que razão, sempre o inundava de sensações eufóricas. Era então outono, mas os dias ainda se apresentavam quase sempre sem nuvens e o céu parecia brilhar com mais esplendor. Dir-se-ia que a natureza procurava aumentar a magnificência dos últimos dias de bom tempo. Olhou para a planície, lá embaixo, reverberando ao sol numa extensão infinita; à distância viam se os telhados de Mannheim e muito além os contornos mal delineados de Worms. Aqui e ali o Reno cintilava num reflexo penetrante. Toda aquela vastidão estava impregnada de pura luz dourada. Com o coração a bater de alegria, Philip lembrou-se de como Satanás mostrara a Jesus, do alto de um monte, os reinos da Terra. Inebriado pela beleza do cenário, parecia-lhe que o mundo inteiro se estendia diante dele; estava ansioso por descer e desfrutá-lo. Sentia-se livre de temores degradantes, livre de preconceitos. Poderia seguir o seu caminho sem o insuportável medo aos fogos do inferno. De súbito verificou haver-se também descartado daquela responsabilidade que transformava todas as ações de sua vida em questões de premente importância. Respirava mais livremente numa atmosfera menos carregada. Só a si mesmo tinha que dar satisfação do que fizesse. Liberdade! Era, afinal, senhor de 
si próprio. Obedecendo ao velho hábito, agradeceu inconscientemente a Deus por não mais acreditar nEle.

Observação: Somerset Maugham assim se refere ao episódio da perda de fé de Philip nos capítulos LXV a LXIX de "The Summing Up", pags 162 a 179 da edição da Pan Books Ltd, de 1976.


* Romancista e dramaturgo britânico.

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