Lei
de bonde para avião
* Por
Anna Lee
Ainda
que aconteçam tragédias como o acidente com vôo 1907 da GOL, que
deixou o país chocado, o avião é considerado senão o meio de
transporte mais seguro, pelo menos um dos mais. E o que se tem visto
é que a cada dia cresce o número de usuários nos aeroportos do
Brasil, do mundo.
Dia
desses, voltando de Belo Horizonte para o Rio, me dei conta disso.
Estava aborrecida porque praticamente não há mais vôos no
aeroporto da Pampulha. Aos poucos, o transporte aéreo da capital
mineira está sendo transferido para o aeroporto internacional de
Confins, que fica a cerca de duas horas do Centro da cidade, no
município de Lagoa Santa, isso sem contar com o trânsito terrível,
que aumenta bastante o tempo desse percurso. Uma mão de obra chegar
ou partir de Belo Horizonte.
Fiquei
mais aborrecida ainda porque meu pai, que era meu companheiro de
viagem, me obrigou a chegar no aeroporto muito mais cedo do que o
horário solicitado pela companhia aérea. Meu pai é carioca, mas
chega com muita antecedência a todos os lugares a que vai. Conta
sempre com a possibilidade de um imprevisto pelo caminho. Eu sou
mineira, mas estou sempre atrasada. Acho sempre que, de uma forma ou
de outra, tudo acaba dando certo. E é claro que nós dois vivemos às
turras, quando o assunto é horário.
Porém,
dessa vez, tive de agradecê-lo pela cautela. Quando já havia muito
que tínhamos feito o check-in
e, como não poderia deixar de ser, tomávamos calmamente um café
acompanhado de pão-de-queijo, olhei para o saguão e vi um mar de
gente. Não pude imaginar como seria possível todos aqueles
passageiros se entenderem com a companhia aérea e como conseguiriam
embarcar. Um tumulto.
Lembrei-me
então de uma crônica de Machado de Assis por
conta da democratização compulsória dos bondes ocorrida no Rio no
início do século 20, que deu direito à população menos
favorecida economicamente de dividir o mesmo transporte público com
a burguesia e os grupos tradicionais da sociedade.
Que
fique claro que sou a favor de qualquer tipo de democratização, mas
que cairia bem um tratado para a convivência social nos aeroportos e
aviões, tal como Machado de Assis sugeriu para os bondes, isso
cairia.
Abaixo
reproduzo a crônica. Genial.
Como
comportar-se no bonde:
Ocorreu-me
compor umas certas regras para uso dos que freqüentam “bonds”. O
desenvolvimento que tem sido entre nós esse meio de locomoção,
essencialmente democrático, exige que não seja deixado ao puro
capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns
extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta
artigos. Vão apenas dez:
Art.1
– Dos encatarroados
Os
encatarroados podem entrar nos “bonds” com a condição de não
tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de
pigarro, quatro. Quando a tosse for teimosa, que não permita esta
limitação, os encatarroados têm dois alvitres: - ou irem a pé,
que é bom exercício, ou meterem-se na cama. Também podem ir tossir
para o diabo que os carregue. Os encatarroados que estiverem nas
extremidades dos bancos devem escarrar para o lado da rua, em vez de
o fazerem no próprio “bond”, salvo caso de aposta, preceito
religioso ou maçônico, vocação etc., etc...
Art.
II – Da posição das pernas
As
pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do
mesmo banco. Não se proíbem formalmente as pernas abertas, mas com
a condição de pagar os outros lugares, e fazê-los ocupar por
meninas pobres ou viúvas desvalidas, mediante a uma pequena
gratificação.
Art.
III – Da leitura dos jornais
Cada
vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o
cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os
chapéus. Também não é bonito encostá-los no passageiro da
frente.
Art.
IV – Dos quebra-queixos
É
permitido o uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: – a
primeira quando não for ninguém no “bond”, e a segunda ao
descer.
Art.
V – Dos amoladores
Toda
pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos,
sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro
escolhido para uma tal confidência se ele é assaz cristão e
resignado. No caso afirmativo, perguntar-se-lhe-á se prefere a
narração ou uma descarga de pontapés. Sendo provável que ele
prefira os pontapés, a pessoa deve imediatamente pespegá-los. No
caso, aliás, extraordinário e quase absurdo de que o passageiro
prefira a narração, o proponente deve fazê-la minuciosamente,
carregando muito nas circunstâncias mais triviais, repelindo os
ditos, pisando e repisando as coisas, de modo que o paciente jure aos
seus deuses não cair em outra.
Art.
VI – Dos perdigotos
Reserva-se
o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo nas ocasiões
em que a chuva obriga a mudar a posição do banco. Também podem
emitir-se na plataforma de trás, indo o passageiro ao pé do
condutor, e a cara para a rua.
Art.
VII – Das conversas
Quando
duas pessoas, sentadas a distância, quiserem dizer alguma coisa em
voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte
palavras, e, em todo caso, sem alusões maliciosas, principalmente se
houver senhoras.
Art.
VIII – Das pessoas com morrinha
As
pessoas com morrinha podem participar dos “bonds” indiretamente:
ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para o outro. Será
melhor que morem em rua por onde eles passem, porque então podem
vê-los mesmo da janela.
Art.
IX – Da passagem às senhoras
Quando
alguma senhora entrar, o passageiro da ponta deve levantar-se e dar
passagem, não só porque é incômodo para ele ficar sentado,
apertando as pernas, como porque é uma grande má-criação.
Art.
X – Do pagamento
Quando
o passageiro estiver ao pé de um conhecido e, ao vir o condutor
receber as passagens, notar que o conhecido procura o dinheiro com
certa vagareza ou dificuldade, deve imediatamente pagar por ele: é
evidente que, se ele quisesse pagar, teria tirado o dinheiro mais
depressa.
*Jornalista,
mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony,
de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio
Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na
Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.
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