segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Coroada de Rosas


* Por Gabriela Cuzzuol


(Ou uma Crônica sobre o significado das palavras)


Certas palavras deveriam definitivamente ser reinventadas. Preconceito, por exemplo, deveria se chamar “mavontade”. Assim, junto. Porque quando se “predispõe a não gostar”, o prefixo vem grudado, absolutamente perto da impossibilidade de desaparecer. Outro exemplo que poderia funcionar bem seria o “quebrei a cara” pelo substantivo “surpresa”. Jornalisticamente falando, funcionaria.

Experimentei os dois, com todos os seus pormenores, na abertura de uma exposição na Casa das Rosas, no sábado dia primeiro. Motivos vários: o cansaço do trabalho do dia anterior, a descrença na decoração como arte, a falta de vontade de fazer uma pauta com grandes possibilidades de “cair”, e a simples ojeriza a decoração... Mentira! Mentira pura e total. Mentira “clara”, ou melhor, escura, porque tecnicamente, mentira é sempre escura.

Está aí outro termo que poderia ser substituído: Mentira. Talvez trocar por “falta de coragem de assumir”. Ou quem sabe “capa protetora”, esse último termo, garimpado de uma pesquisa nada científica de acordo com uma pesquisa nada científica, feita com cinco amigas minhas, adicionado de “às vezes”, elas reafirmam, quase nunca. Trocar mentira por “escudo” poderia ser uma. Ou não. Moralmente impensável, jornalisticamente inaceitável.

Pois é, o fato é que, apesar de todos os verdadeiros motivos acima, o que me fazia não querer ir conferir a “tal da CAD”, era que há cerca de dois meses, por causa dela a minha casa estava fechada. Minha casa sim, porque após mais de um ano de risos, amigos, estórias, poesia e inúmeras descobertas, virou minha casa.

Uma vez eu ouvi que casa é o lugar onde plantamos nossos sonhos e esperanças. Alguns dos meus estão plantados ali, em meio àquelas rosas. Sonhos que eu nem sabia que tinha e, o melhor, não eram apenas meus. Por ali eu vi o “nascimento”, a descoberta de grandes artistas, coisas como a senhora que não gostava de nada e descobriu um motivo brilhante para “dar uma volta num sábado à tarde”; a virtuose despretensiosa que não pensava em publicar, cuja obra nunca sairia dos limites daqueles portões. Vi o engenheiro cujos olhos brilhavam ao vestir-se em versos; o professor que se fez artista; a periferia que em meio àquele hall, se mostrava em pé de igualdade, como imprensa nenhuma havia tido a capacidade de fazer. Ali eu percebi o reduto dos “res”: redescoberta, reinvenção, renascimento, por vezes recomeço.

Fora ali também, depois de anos de jornalismo musical, confirmei que a ardência da fogueira das vaidades é imutável, e que, onde houver arte, estará lá. E que ainda, como diz um poeta-amigo, eles, “os nobres eleitos”, suportam apenas nível constante”*. Há naquelas paredes, uma verdade que só decifra, quem passou parte da vida ali.

Aí, “vem a tal CAD” e a fecha, por meses! Motivo suficiente para não querer ir, me recusar a ver, desenvolver paúra pelo duo “Rosas-Decor”! Ah... Salvamento graças a outro substantivo: gratidão! A este, somou-se a curiosidade clássica de repórter e lá estava eu: cansada e cheia do que fazer, na abertura da “tal expo”.

Troca semântica número 2: a expressão coloquial “quebrei a cara”, por “surpresa”. Ou melhor, as duas juntas, porque de fato, foi assim que aconteceu. E não é que “funcionou”? Sim, havia poesia nos cômodos, em suas várias formas: visual, dançante, ao ar livre, “recitada” pelo computador, escrita nas paredes. Menos do que eu queria, mais do que esperava, pouco viva talvez, presente, de fato. Eles todos. Os mesmos que, de forma abstrata, fizeram de lá sua morada. O Drummond, o Bandeira; os “Andrade”, o Vinícius, o Haroldo, o Augusto, o Blake e o Camões, ah o Camões... estavam todos lá. No concretismo de palavras grafadas,sutileza das cores, detalhes, eles estavam presentes.

Em todo esse tempo de “Casa”, foi o encontro com eles, em sua essência e poesia, capaz de fazer tantas vidas alterarem seus rumos artísticos (ou até despertar para algum), ou em outro verbo, despertarem. Eles também fizeram com que eu vencesse a resistência, me despisse de significados errados (como diz o Veríssimo), fosse para casa rápido e ligasse para o editor, insistindo na pauta.

Sim, ainda era a minha casa. Minha casa “coroada de rosas, coroada de verdade, de rosas...”** Acho que merecia mesmo uma boa visita, pois como diz o nosso já citado Veríssimo, algumas palavras têm o significado errado. Falácia, essa toda aqui, é uma delas...

*Carlos Savasini em “Caos”.
** Fernando Pessoa em “Coroai-me de Rosas”

* Gabriela Cuzzuol é jornalista, professora de literatura e pós-graduanda em Jornalismo Cultural pela PUC-SP.


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