terça-feira, 22 de agosto de 2017

Tanatologia, a ciência da morte


* Por Harry Wiese


À minha mãe in memoriam!

Nem sempre se pode escrever textos lindos que retratam situações e momentos felizes e bons. Às vezes somos surpreendidos por circunstâncias inesperadas e não sabemos tratar muito bem delas. Então é tempo de escrever diferente e que pode não agradar.
Do quarto do hospital vejo o cemitério, que fica à esquerda e logo acima da igreja. Meus pensamentos param ali e começo a refletir sobre a vida e a morte.
Lembro-me das leituras sobre tanatologia, que é a teoria ou o estudo científico da morte, suas causas e fenômenos a ela relacionados; ou o estudo dos mecanismos psicológicos para superar os efeitos da morte na mente humana. Conhecer esses fatos é fundamental para ter mais propriedade para se relacionar com eles.
Pois é, são assim as circunstâncias do mundo. Quando se está em estado de tristeza, reflexão e sensibilidade profunda, as ideias, quando afloram, levam-nos a reflexões, muitas vezes, destituídas de racionalidade. A morte, “a indesejada das gentes”, como disse Manuel Bandeira, assume seu poder e provoca consequências inexplicáveis.
Incrível! No cemitério, os mortos dormem em paz! Os vivos estão no hospital, cuidando e visitando os doentes. Também estão na igreja, logo caminharão sobre o tapete colorido, feito de madrugada. Vejo-o daqui: é Corpus Christi!
Sim, os mortos estão sós, mas há uma história enterrada em cada túmulo. Cabe aos vivos contá-la, pelo menos parte dela, se assim o desejarem e puderem. E o resultado se chama história recuperada, uma forma de vida diferente. Caso contrário, a existência, aos poucos, se resumirá a duas datas: a do nascimento e a da morte, na lápide exposta.
O ser humano, disse-me uma amiga, sem se ater a razões científicas, tem um nascimento e várias mortes. Vou descrevê-las. A primeira morte é a morte física. O ser humano dá o último suspiro, mas ainda o corpo está presente: é o velório, com desespero, choro, rezas e lamentações. A segunda, vem logo depois. O corpo é levado à sepultura, ou ao crematório. Desaparece da presença de familiares e amigos. É o luto, a saudade e as lembranças em estado de perpetuação, mas o tempo é parceiro e se encarrega da suavização do sofrimento. A terceira e última morte é quando se pronuncia pela última vez o nome da pessoa. Quando isso acontece, as lembranças e o nome não existem mais. É o momento da ausência absoluta, como não tivesse existido.
Mas a humanidade com suas ações criativas e benevolentes, para retardar a última morte, criou leis e decretos e o nome das pessoas são expostas em placas de ruas, pontes, prédios, praças e escolas. Desconfortável é ver as placas dos mortos-vivos e não saber quem eram, o que fizeram; em suma: a história contada e não aprendida. Sorte têm os vivos e os mortos, que possuem registros em textos históricos, guardados em compêndios e enciclopédias, que os mantêm com perspectiva de vida longa. Pena que nem todos têm este privilégio, mas deviam tê-lo, pois todos são sujeitos da História, com direitos e possibilidades iguais.
Paro de viajar pelo mundo do pensamento e volto a olhar para o cemitério que vejo da janela de um quarto de hospital. Da igreja ouço o canto triste ao Senhor morto. Sim, as flores multicoloridas na necrópole também estão mortas. Todas as flores estão mortas. Parece-me que a legislação não permite levar flores vivas: rosas, dálias, lírios e crisântemos. Prevenção. Fica até melhor: flores mortas combinam mais com pessoas mortas. Simbiose perfeita, nada a reclamar. No passado, quando as sepulturas eram de chão batido, plantavam-se lírios e cravos sobre elas e o perfume exalava para além dos limites do campo-santo. Eram as badaladas flores dos cemitérios. Em momentos pouco nobres, na calada das noites, houve colheitas clandestinas e as flores dos mortos felicitavam os vivos.
Sei que a tanatologia é a ciência que estuda a morte e explica as fases de luto e tudo o que se relaciona em ele; mas tem dificuldade em explicar certas circunstâncias muito individuais, como dizia minha mãe: “Quanto maior o amor em vida, maior a dor na morte!” É isso! Desculpem-me pela crônica triste, porque às vezes somos surpreendidos por circunstâncias inesperadas e não sabemos tratar muito bem delas. Então é tempo de escrever diferente e que pode não agradar.
Agora me lembro do final de uma música de Oswaldo Montenegro, que parodio assim: “E que a minha tristeza seja perdoada/ Porque metade de mim é amor/ E a outra metade... também.


* Harry Wiese é escritor que reside em Ibirama - SC. É autor de vários livros, dentre eles A sétima caverna, romance premiado pela Academia Catarinense de Letras.




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