domingo, 27 de agosto de 2017

Sujeito Zero (16)


* Por Sergio Vilas Boas



Seu Edmundo, Inês e suas três filhas – Clara, Ava e Alma – moraram no Jardim Nova York nos anos setenta, mas não nos fundos da casa de Carmem e Alfredo. Alugavam a casa hoje pertencente a João Vital, que foi a maior e mais bonita da Rua C, com paredes brancas homogêneas, grades verdes cercando uma aconchegante varanda sobre o teto da garagem. As janelas da frente, amplas, eram de vidros foscos. A que dava para a outra entrada, a da cozinha, era pentagonal, dividindo cores: amarelo, vermelho, verde, azul e violeta. Ao redor das grades ficavam os canteiros de damas da noite, samambaias e antúrios.

Na época, Seu Edmundo já exibia um talento incomum para lidar com roseiras e os vizinhos apreciavam muito seu trabalho. Depois que ele foi morar sozinho na casa de fundos, seu espaço de cultivo estreitou-se. Mas ao longo do corredor de acesso havia um canteiro de uns cinqüenta centímetros de largura por dois metros de comprimento.

Carmem sempre quis que aquele pedaço de terra fosse transformado em jardim. O consentimento de Alfredo, no entanto, demorou a vir. Para “evitar trabalhos”, Alfredo preferia tudo pavimentado como pista de rodovia. Quando consentiu, Seu Edmundo não perdeu tempo: plantou jasmins, damas da noite, antúrios, avencas, violetas e rosas. Foi a maneira que ele encontrou de fazer história ali.

Em uma de suas raras visitas, a sempre ocupada viajante Alma encontrou o pai sujo de terra até os olhos.
- Sabe o que estou fazendo aqui? (Ele perguntou).
- Plantando. (Mas ela estava certa de que a resposta não podia ser tão óbvia).

Propositalmente, creio, Seu Edmundo deixou-a algum tempo com a interrogação explícita na testa, para então corrigi-la:
- Enxertando.
Naquele tempo, Alma já era formada em biologia. Mas ele tomou conta:
- Quer ver como coloro flores?

Claro que ela queria ver. Aquilo a encantava. Alma nunca exerceu a biologia, mas criou o hábito de observar os fenômenos triviais, e não seria estúpida a ponto de desacreditar o pai em sua proposta de obter cores diferentes de rosas através de sua engenharia genética autoral.

Ela embarcou no conto, pensando que podia manipular Seu Edmundo, a fim de vê-lo desenvolto em seu habitat. Com um canivete afiado que reluzia ao sol do meio-dia de outono, ele cortou um galho de roseira vermelha de uns quinze centímetros. Tirou fora folhas, espinhos, deixou-o limpo; enterrou o galho em um saco plástico (daqueles de leite) cheio de terra escura. Apertou a terra na base do caule com os polegares, compactando-a.
- Este caule é a mãe adotiva.

Ele não estava nem um pouco intimidado pelas ciências da filha diplomada, que o acompanhava intrigada.

Ele então fendeu um T mais ou menos no meio do palmo de caule enterrado no saco. Delicadamente, abriu as pontas e obteve o formato de uma vulva.
- A mãe vermelha vai adotar uma filha branca. (Prosseguiu didático).

Havia pelo menos umas três roseiras brancas altas e bonitas. Numa delas, entre o caule principal e um ramo com cinco folhas, ele mostrou à filha um carocinho verde, o começo de um broto, exatamente onde ia aparecer outra rosa. Retirou a borbulha (gema ou broto) do caule como um relojoeiro extraindo uma engrenagem minúscula.

Levou a gema até o saco de terra sem encostar os dedos na parte branca, a que ia se juntar à vulva aberta no caule. Uniu as peças num encaixe perfeito, que também impressionou a filha “estabanada e culta”. Ele conseguia realizar algo complexo de modo corriqueiro. Uma quase redundância, no caso dele – o corriqueiro em pessoa. Mas um absurdo para sujeitos “não-comuns”, incapazes de aceitar o engenho das trivialidades.

Ele sustentou a atadura com os dedos enquanto puxava um pedaço de barbante de ráfia previamente cortado. Enrolou o barbante várias voltas, nas partes de cima e de baixo da junção, deixando de fora somente o olho da gema. Segundo Alma, era uma bobina impecável, uma verdadeira peça de artesão.

- Vai ficar verdinho daqui a uns 20 dias... (Ele garante).
- Sim, e a gente talvez tenha uma rosa de outra cor. (Ela atropela).
- Talvez?
- Com certeza, quero dizer. (Redireciona). Que cor, pai?
- Ah, isso é surpresa.

Seu Edmundo cortou uma lasca no topo do caule, logo acima do enxerto, sobre o qual brotariam as primeiras mudas. Nasceram rosas cor-de-rosas, algo assim de um tom que não se encontra no mercado global.



* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de Os Estrangeiros do Trem N (1997), Biografias & Biógrafos (2002) e Perfis (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.




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