segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Só mais um dia


* Por Ilcimar Abreu


Viverei mais este domingo. Sobre as praças, pisando ilusões e descaminhos. Viverei mais um dia, chutando os problemas pra debaixo do tapete, caminhando ao largo do meu amor. Limparei o rosto, a lágrima que não caiu, tecendo sem parar os pensamentos que ninguém ousaria descobrir. Abrirei um livro de contos imaginando que minha vida estará refletida ali, em qualquer página, em qualquer parágrafo, talvez uma história sem título. As janelas serão fechadas porque o vento forte sempre estremece meu corpo frágil. As flores murcharão, tristes como a minha própria tristeza.

A vida prosseguirá inquebrantável na segunda-feira. Acordarei insone, não me reconhecerei. As crianças me provocarão aos gritos, aos saltos, tão felizes. Afastarei todo tipo de ira; meu sangue às vezes ferve igual ao leite branquinho ao fogo. Os pássaros cantando, cantando muito, parecem que vão explodir – músicos de Deus. A máquina de lavar clareia meus objetivos, ensaboando minhas idiossincrasias. O jornal preferido chega às minhas mãos com uma pontualidade inexistente no dia-a-dia. Meus sonhos, vou adiando. Acho que não terei tempo.

Tempo de rever o homem da minha vida, caminhar abraçada ao que restou de nós, de tudo. Deitar meus olhos nos seus, vestir-me como uma mulher apaixonada. Sentir-me cruel como o amor, sendo o que não sou: poesia. Cantarei uma canção, precisarei morrer mansamente, sem dor, como se fechasse uma gaveta. Um dia, espalharei porta-retratos que exibam minha timidez igual ao vento que revolta o mar em tons de azul e verde.

Hoje é domingo. Meu corpo só quer um corpo, alguém que não me baste. Escrevo compulsivamente sob o sol da minha cidade. Minha casa são as ruas, minha arquitetura é sutil. Não existe nada melhor do que duas forças opostas que se entreolham e se entrecruzam. Vivo de metáforas, às vezes antíteses, às vezes harmonia, plenitude. Tons de branco e preto descolorem meu caminho onde você não esteve. Minhas atitudes refazem e tecem e somam e, afinal, concluo o quanto fraquejei. Devo retomar as linhas do desenho, arrumar palavras, estantes, conhecer os sabores e tudo o mais que adiei. Acho que não terei tempo.

* Produtora cultural 



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