segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Mulher sem boca


* Por Danielle Arantes Giannini


De manhã, abri a porta do elevador e dei de cara com a mulher, mulher sem boca, bem cedo, bom dia. Expeli a saudação matinal aos sussurros e virei de costas porque a falta de boca da mulher me incomodou. Ela só tinha testa, dois olhos ainda inchados do sono e um nariz qualquer. A falta de boca chamava a atenção. Pensei que tipo de mulher seria aquela, saiu de casa sem colocar a boca. Mulher apressada certamente, mulher descrente de tudo, afinal para que boca se nada na vida sai como planejado, mulher sem vaidade talvez. Podia ter se servido de um mísero batom e não o fez, sabe-se lá o por quê.

Saí do elevador com passo apressado, igual gente importante, para não me perder mais em conjecturas sobre a boca que a mulher não tinha. Mas não teve jeito, vi tantas bocas desfilando nas ruas, que foi impossível deixar de notar, nunca as bocas tinham se feito tão presentes. Para espanto meu, observei que outras mulheres andavam sem boca; fosse a falta de uma bolsa, de sapato até, mas sair de casa sem boca era o fim. A variedade de bocas que passou por mim foi enorme, bocas de todos os tipos e tamanhos, bocas grossas, finas, ágeis, molhadas, ressecadas, moles, caídas, risonhas, todas bocas.

Em poucos minutos deu para notar que a boca da moda era a carnuda, estava à venda nas melhores lojas do ramo, injetável, fácil de aplicar. Essa boca impunha respeito, dava segurança às mulheres, afinal não era um mero traço abaixo do nariz, era volumosa, esbanjava sensualidade. Imaginei que palavras saíam daquele tipo de boca. Nem todas as bocas que as mulheres carregavam eram exuberantes assim, havia outras mais modestas, não tão intensas. Eram mulheres que escondiam suas bocas normais atrás de cores variadas, umas brilhantes, em tons de rosa, marrom, carmim. As bocas vermelhas, caprichosamente desenhadas, deviam levar um bom tempo até ficarem prontas para sair à rua; ainda bem que para o caso de emergência as cores podiam ser reaplicadas a qualquer momento e em todos os lugares, com o perdão da etiqueta.

Triste mesmo foi esbarrar em uma boca rachada, não sangrava, mas tinha um couro grosso, ressecado, não via água há quanto tempo, cogitei. A mulher que a transportava estava com olhos cansados, talvez estivesse ela mesma rachada por dentro.

Conforme eu caminhava, mais bocas apareciam, situação insuportável essa de topar com bocas aqui e ali, bocas assim e assada; se fossem os olhos a saltar do rosto das pessoas, mas eram bocas. Bocas que se movimentavam freneticamente, outras lentas, outras ainda fechadas. Engraçado foi ver bocas que executavam risadas, gargalhadas, essas eram bocas que não se importavam de parecer tortas por uns segundos, tempo suficiente para se ver tudo dentro delas, desinibidas. No restaurante, vi uma boca nervosa sentada perto do bufê de saladas, não parava de mastigar alface, nem sei quanto tempo permaneceu ali naquele exercício mandibular. Na mesa ao lado, uma boca severa atracada a um pedaço de carne mal-passada, escorria sangue de animal abatido. No toalete, mais bocas, todas dispostas diante do espelho, sendo redesenhadas, para a salvação das mulheres.

Como havia bocas para escolher, bocas amenas, bocas raivosas, bocas culpadas, bocas que só se dignavam a sussurrar qualquer coisa indecifrável ao serem interpeladas por outras bocas, bocas masculinas também, de tipos variados, mas nem tanto. De umas saíam músicas, de outras lançavam-se impropérios, umas permaneciam em posição de bico por longo tempo, algumas não era bocas. Depois de bocas e bocas, nada me chocou tanto naquele dia quanto a boca que vi sendo carregada como um fardo por uma senhora que vestia trapos e nada mais, era uma boca cor de pele, sem dentes... uma boca sem dentes, nada entrava nada saía daquela boca maltratada. Lembrei-me imediatamente da mulher sem boca no elevador e concluí que era melhor não ter boca a ser portadora de uma boca sem dentes. Nunca mais saí de casa sem verificar no espelho se estava carregando minha boca comigo, para o caso de precisar.

* Jornalista – blog http://www.lugaresdomundo.com




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