domingo, 6 de agosto de 2017

Melancolia


* Por Pablo Uchoa


Ela me observa de soslaio, sorri oblíqua, encolhe os olhinhos. Pálpebras de japonesa, mas imita um sotaque nordestino de lugar nenhum, pronunciando os t’s e d’s com a ponta da língua nos dentes, “ó, my gódi”.

E sorri.

A julgar pela trilha sonora, é alta madrugada, a guitarra entristecida e a voz rouca de B.B. King me dizem que é hora de se deixar arrebatar. Ou muito mais suavemente, se entregar, procuro os braços da poltrona como um passageiro num avião que decola e abro as comportas para que blues espacial me dobre os tímpanos e atravesse os neurônios. Qualquer coisa liquefeita modula aqui dentro, início de labirintite? – minha embriaguez é como uma cabine despressurizada. Um sabor amargo nos cantos da língua, gim tônica, talvez?

Adoro gim tônica quando estou doente. “Ó, my gódi”.

Agora ela se inclina para pegar a caixinha vermelha e branca em cima da mesa, detém o gesto no meio do caminho, tem problema se eu fumar? Respondo-lhe que não com um meneio de cabeça, ela acende seu cigarro com o minúsculo isqueiro, na medida certa para suas pequenas mãos. Justifica-se, tenta me explicar que só fuma quando bebe, descreve o processo químico da vontade de fumar “a nível de nervo simpático e parassimpático” mas não presto atenção, pra mim basta admitir que é fumante, querida, nunca tive problema pra beijar mulher que fuma.

Bull-shit adolescente, tudo isto bull-shit adolescente, recriminaria minha ex-esposa, num almoço de dia de semana em algum restaurante caro, enquanto me apresenta o cartão do advogado, ele vai te procurar. Cafezinho, senhor? – outro gim tônica, por gentileza.

Mas que estou dizendo, nem sequer esposa tive, no máximo minha paulistinha que imita o sotaque nordestino da novela das oito, deixei-a falando e me perdi na fumaça que sobe de seus dedos.

Você sabia que o cigarro aproxima as pessoas, ela me pergunta, entre goles de cerveja, e reveza a perna cruzada. Truque fácil, óbvio, mas eu por instinto caio, sigo o movimento – ih, a gim tônica – me contenho para não deixar escapar um comentário de mau gosto, não combina comigo esse tipo de coisa.

Charles Bukowksi talvez esteja sentado ao meu lado e eu deva passar os braços em torno do seu ombro, “quando minha mão pálida deixar cair a última caneta em um quarto barato, eles vão me achar lá e nunca saberão, meu velho”. Nada a saber, caríssimo, gim tônica e gripe, apenas. Bull shit adolescente.

Apesar de tudo, gosto dela. Veste luvas imaginárias de seda branca e canta um verso em inglês, se pudesse renasceria como Nina Simone, me conta. Pois certa vez – num café na Austrália ou em New Orleans? – sentou-se à sua frente este homem de sapatos furados e barba malfeita, waitress, please. E tomou-a bailar pelo bar, ao som de Nina Simone, onde foi mesmo isso? Os clientes habituais sorriam e observavam o casal obtuso, um homem de roupa mal-amanhada e a garçonete sul-americana de olhinhos e cabelos de anjo. Não fosse esta tremenda bebedeira eu poderia jurar que se tratava de um homeless australiano ou americano, “ó my gódi”, de qualquer maneira sem-teto são gratos por um prato de comida em qualquer lugar do mundo.

Encontrei minha Nina Simone perdida nesta noite quente sem estrelas, noite de inúteis. Vamos tomar uma cerveja naquele bar ali na frente, eu lhe propus. Dez minutos depois aqui estamos, sem história, sem passado, nada em comum. Mas ela descobriu minhas origens, “ó my gódi”, já temos algo a compartilhar.

Isto e o blues, ela acrescenta. O pouco que sei sobre blues aprendi em Shanghai, respondo.

Shanghai, ela arregala os olhinhos.

Pois é. Cotton Club, creio que se chamava assim o bar em Shanghai. Mas bem poderia ser São Paulo, Manhattan, Kuala Lumpur ou Cidade do Cabo, que diferença faz? Clubes de blues são sempre esfumaçados e melancólicos, não era assim este de Shanghai? Muda-se a mulher de luvas brancas e só.

Em Shanghai ela atendia pelo nome de Lilly, obviamente não era verdadeiro mas as chinesas sempre dão um nome ocidental para facilitar a vida dos expatriados. Lilly, a tibetana, mulher de negócios – odiava Shanghai e se pudesse morava em Hong Kong, mas fazer o quê, as coisas não são tão fáceis na China. E deixemos pra lá, não preciso contar esses detalhes à minha nova Nina Simone.

Ela continua me olhando levemente inclinada para frente, mole, prometo a mim mesmo que este é o último gim tônica e então farei jus aos meus instintos de caçador. Vou até o balcão, quer mais uma cerveja? Outro sorriso entre pálpebras de japonesa, isto é um sim? Por via das dúvidas, fica sendo.

Levanto-me, ih, a labirintite. O blues virou um drum’n’bass que retumba, dum-dili-dum, dili-dum, dili-dum. Esfriou por aqui ou é possível que esta música tenha propriedades mágicas? Uma mão de luvas brancas pousa sobre a minha e sussurra qualquer coisa, quem será a dona de tão leves dedinhos?

Nadia. A russa. Que há alguns minutos, eu percebera, me observava com olhar sacana, por trás dos cabelos negros que vão até os ombros. Nada de luvas brancas, e sim longos e diretos olhares azuis por trás das mechas repicadas. Tive a impressão de que tentava fazer cara de menina, mas ora bolas, isto não é lugar para meninas, afinal. Não senhora, nisto você não me engana.

Você não tem cara de chinês, ela me diz.

Rio, gostei da piada.

Uma vodca?

Aceito outro gim tônica, obrigado.

O Cotton Club. Enxugo com o guardanapo as gotas que derretem sobre o balcão.

Vamos dançar.

Não estou em condições, Nádia.

Se não serve pra dançar, não serve para nada. Venha, ela agarra meu pulso firmemente, os dedos da outra mão brincando perigosamente no bolso da minha calça jeans.

Termino este gim tônica e tenho de voltar para casa.

Ela aproxima o rosto do meu ouvido e involuntariamente me inclino para trás, um pouco de ar. Como se eu sufocasse sob uma tonelada de panos. Um quarto de hotel e uma tonelada de panos. Gosto de dormir sentindo o peso dos cobertores, ela dizia, nunca vi russa para sentir tanto frio à noite. A respiração quente ao meu lado, ponho um pé para fora da cama, um pouco de ar. Meu bafo quente, suor. Seu olhar direto.

Não sei o que você vê naquela puta de luvas brancas. Ridículo, luvas brancas hoje em dia.

O quarto de hotel. Cem quilos de material felpudo. Seu ressonar quente, meu suor frio, empapando a camiseta. Rangem as persianas e meus dentes com bruxismo. Impotência conjugal, tédio king size. O pé para fora da cama, a porta de saída, um pouco de ar, pelo amor de deus.

Seu olhar baixo: volto pra Moscou amanhã, ela murmura.

Desculpe, como disse?

O drum ‘n’ bass: dum-dili-dum, dili-dum, dili-dum.

Ah, entendo.

Dum-dum-dum, dili-dum, dili-dum.

Ora, mas esta não é uma boa notícia?

Nádia levanta os olhos e não sei o que vê enquanto me mira. Passa-me a impressão de alguém que se perdeu no meio de um filme e encolhe as pálpebras para tentar compreender as legendas. Desvio-me de suas pupilas expressivas, que me lançam agora um olhar redondo, suplicante, mas não sei de nada, amor, não me pergunte. Estamos incomunicáveis, é só isso que sei. Ou redondamente enganados, redondinhamente isolados, como ilhotas neste mar azul, ou melhor, em seus olhos azuis, agora um pouco vermelhos – desculpe, eu tinha esquecido o encantador que seus olhos eram. Aliás, posso enxugar essa lágrima teimosa que insistiu em cair deles?

Passo o braço sobre seus ombros, arqueados mesmo quando abatidos, ombros delicados de mulher preciosa. Isto é uma vida de passagem, querida. Fuja.

Nádia, Nadezda, esperança. A única palavra que sei em russo. O resto está lá, intraduzível. Mudo como o branco de umas luvas que se encontra em qualquer bar de blues do mundo, não é por acaso que eles existem em toda parte. Virei-me para tomar mais um gole de meu gim tônica e perdi o momento em que ela decidiu caminhar até a porta. Terá me acenado antes de partir?

Um fio de água escorre do balcão para minhas pernas, o diabo deste calor que faz o gelo derreter num piscar de olhos. Garçom, por favor, um guardanapo deste lado. A droga de gelo que se foi antes mesmo que eu tocasse meu drinque. Aliás, esta cerveja também escorre que é uma piscina, há quanto tempo andará aí? Imagine, não há por que ser minha, se bem que estava ao lado do meu gim, é verdade, mas...

Ó, my gódi.

Digo isto e baixo meu olhar, sem coragem de encará-la. Desculpe, a bebida demorou um pouco pra chegar. E imagine só, estava pensando no blues, na China, acabei...

Sssshhh, ela põe os dedos nos meus lábios. Instintiva, caçadora. Seu hálito frio antecipando caninos firmes, sedentos, que cravarão em meu pescoço. Presa, tento desvencilhar-me, para uma Nina Simone você até que está bem assanhada, penso, mas não digo, pois ela volta a cerrar meus lábios. E meus olhos.

“Ó, my gódi”, nada agora é passageiro. Pálpebras de japonês, mas nada acontece do outro lado do mundo. Não existem ilhotas, apenas comunicação instintiva. Amanhã nos levantamos e o sol lá fora nos fará reduzir as pupilas, apertaremos os olhos para tentar compreender as legendas do filme.

(*) Cronista e editor do site www.narizdecera.jor.br. Vive atualmente na Inglaterra, dedicando-se a pesquisas no Institute for the Studies of the Americas, da Universidade de Londres. Autor do livro-reportagem “Venezuela: A Encruzilhada de Hugo Chávez” (Ed. Globo, 2003), menção honrosa no prêmio Vladimir Herzog 2004.



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