segunda-feira, 14 de agosto de 2017

A moça do sonho


* Por Roberto Beltrão


O sonho se repetia, se repetia, noite após noite. Tudo estava escuro e eu me via sozinho, em frente a um portão de grades com belos detalhes e sustentado por duas colunas de ferro decoradas com estátuas de anjos. Meninos gordinhos com asas, ajoelhados e olhando para o céu. Para além do gradeado, mal dava para ver as silhuetas de coqueiros altos em fila no terreno. Queria ir embora dali, mas não resistia à curiosidade e colocava o rosto entre as barras metálicas para tentar enxergar o que havia do lado de dentro. De repente, no meio da penumbra, surgia a figura de uma mulher jovem, com longos cabelos loiros e vestido decotado vermelho. Tinha o rosto delicado, lábios pequenos, olhos claros e tristes. Acenava me chamando para entrar. Eu desejava atender ao convite, mas um grosso cadeado selava o portão. De repente a moça virava de costas e ia embora. Eu esticava a mão, gritava pedindo para ela voltar… e neste momento sempre acordava agoniado, com o suor pingando da testa.

Naquela época, meados da década de 1980, eu morava na Casa do Estudante – abrigo para rapazes do interior que vinham fazer faculdade na capital. Foi um tempo de sacrifício, mas valeu para conquistar o diploma de Direito. Meu companheiro de quarto já não aguentava me ouvir falando enquanto dormia. Lourenço dizia que não era bom ficar só com a cara enfiada nos livros, era preciso aproveitar o Recife, ir ao cinema, conhecer os bares e as boates, paquerar. Mas eu me esforçava o máximo para terminar o curso sem atrasos, pois desejava voltar logo à minha cidade, abrir um escritório, começar a trabalhar. Foi bastante desagradável quando recebi a primeira nota baixa. E ele sentenciou:
Tá vendo, Rodolfo! Fez prova ruim porque não dorme direito. Precisa se divertir, relaxar um pouco, até para estudar melhor, cara!

Então topei a proposta de Lourenço: no sábado, saímos para uma farra à noite. Ele até havia conseguido um Fusca emprestado com um tio para circularmos à vontade. Fomos logo ao bairro das Graças onde, naquela época, existiam muitos bares. Não demoramos a nos entrosar, pois meu colega conhecia bastante gente. Lá para as tantas, alguém nos chamou para uma festa que estaria rolando num apartamento na Rua da Aurora, no Centro.
Vamos nessa? Lá vai estar cheio de meninas, as mais gatas da faculdade.

Como dizer não ao apelo? Concordei, apesar de já estar meio cansado. Perguntamos à turma como chegar ao endereço da festa e partimos. Acontece que ele era menos entrosado com os caminhos do Recife do que imaginava e começou a dar voltas e voltas nas ruas desertas sem acertar o rumo. E nada de dar o braço a torcer. Repetia apenas que eram só mais dois ou três cruzamentos para chegar, que ficasse tranquilo, pois tudo estava sob controle. Passava de meia-noite quando entramos numa via larga. A placa quase escondida pelos galhos de uma árvore grande dizia: Avenida Mário Melo. De longe enxerguei uma moça que andava tranquila na direção contrária à nossa. Seguia na calçada junto a um muro longo e alto. Estava de blusa branca, calça jeans, sandálias baixas. Quando o carro foi chegando mais perto, meu Deus do céu, reconheci o rosto, os lábio, os olhos.
Para, para, Lourenço! É a menina que vejo nos sonhos!
Tá doido, rapaz? Não tô vendo ninguém.
É sério, cara! Mete o pé no freio!

Nem esperei ele estacionar direito e abri a porta. Andei ligeiro para alcançar a moça, fui calado para não assustá-la. Parecia não me notar e, sem pressa, dobrou uma esquina justo onde acabava o muro alto. Fiz a mesma curva, mas a vi na rua estreita e escura. Andei por alguns instantes tentando encontrá-la.  E mais à frente, para meu espanto, me deparei com o mesmo portão de grades que também via em meus pesadelos: os detalhes no ferro retorcido, as colunas enfeitadas com os meninos alados gorduchos, o cadeado impedindo a entrada. Era ilusão?

Senti nas mãos o frio das barras metálicas. Nelas encostei o rosto para tentar distinguir o que havia para além da grade. Percebi uma coleção silenciosa de túmulos simples e jazigos ornamentados, distribuídos em alamedas. Um cemitério antigo cheio esculturas de mármore e aquelas palmeiras altas em fila. Era real.

E, no meio daquele cenário mudo, estava a moça a quem procurava pouco antes. Agora sorria e acenava para que eu entrasse. Entrar como? Estiquei a mão para alcançá-la e ela veio em passos miúdos. Notei o coração querendo sair do peito e um arrepio veio encrespar a espinha. Então o berro me tirou do transe:
O que tu tá fazendo aí, Rodolfo? Sai daí, rapaz!

Lourenço desceu do Fusca e me puxou pela cintura, me afastando um pouco do portão. Nesse momento juro ter visto uma transformação absurda no rosto da moça, então contrariada na vontade de me ter ao lado dela: a face delicada passou a ter os traços sinistros de uma caveira!

Quis correr, mas a mão do espectro atravessou por entre as barras de ferro e me segurou pelo cotovelo. Tinha uma força sobrenatural e um toque gelado que me paralisou. Fui tomado por uma tontura, a sensação de que a morte viria me abraçar. Meus olhos foram fechando…

Despertei no banco do passageiro do Fusca. Meu amigo dirigia apressado e não parava de falar:
Cara, que coisa mais doida foi essa? Parecia um maluco parado na frente do Santo Amaro. Nem me escutava, tava feito zumbi olhando para o nada, feito abestalhado. E nem bebeu tanto assim. O que foi que deu em você? Quer me matar de susto?

Como explicar aquela situação? Disse apenas que havia me sentindo mal, uma maluquice momentânea, que esquecesse. Ele demorou a se conformar, e depois não me perguntou mais nada. Até terminar a faculdade, saí outras vezes com Lourenço, sim. Mas sempre durante o dia. Fomos à praia, por exemplo. Sempre bem longe do cemitério…


* Jornalista e pesquisador, autor do livro de contos “Recife assombrado”.




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