Bonecos de ventríloquos
A
longa experiência jornalística demonstrou-me a impossibilidade de
retratar, com milimétrica exatidão e absoluta fidelidade, o que as
pessoas entendem por “realidade”. Há um surrado clichê,
repetido ad náusea nas redações, que diz: “contra fatos, não há
argumentos”. Mas será que não há mesmo?
É
pitoresco como as versões, em torno de um mesmíssimo acontecimento,
variam, dependendo de quem os narra. Certa feita, fiz uma experiência
que me marcou bastante como editor. Designei três repórteres
diferentes, com formações, idades e experiências variadas, para
cobrirem um mesmo evento. Dois eram homens e uma era mulher. As
idades variavam de 25 a 50 anos. A mocinha estava conosco há apenas
dois anos e o profissional veterano tinha quase trinta anos de
janela.
O
resultado foi dos mais surpreendentes. Nem parecia que os três
haviam coberto o mesmo acontecimento, tão diferentes eram suas
versões. Como naquele tempo não contávamos ainda com o recurso do
computador e as matérias eram datilografadas, guardei os três
originais das reportagens comigo e volta e meia, passadas duas
décadas da experiência, releio-as e as analiso meticulosamente e
ainda hoje me espanto.
Portanto,
essa história de que nós, jornalistas, somos os “fiéis”
relatores da realidade, não passa de balela. O que trazemos ao
público é a nossa “versão” dos acontecimentos que não é,
necessariamente, o retrato fiel do fato.
Há
quem diga que as imagens refletem com absoluta fidelidade o que
aconteceu. Retruco que nem estas. Elas dependem do ângulo que o
fotógrafo, ou o cinegrafista enfocou. Num deles, as coisas parecem
de um jeito, em outro, de outro bastante diferente. A conclusão
fica, sempre, por conta do leitor de jornal ou do telespectador. E
estas nem sempre (diria que nunca) coincidem.
O
assunto coberto na “experiência” que mencionei foi uma tentativa
de seqüestro, por parte de um marginal, fugitivo da cadeia, seguida
de cinematográfico resgate por parte de um policial, que redundou na
morte do seqüestrador.
A
repórter feminina atentou para detalhes que escaparam do olhar
masculino, como o traje dos personagens, a cor da blusa e da camisa
da vítima e do agressor respectivamente, em que momento o agente da
lei sacou a arma e quantas e quais eram as testemunhas do fato.
O
profissional veterano, por seu turno, narrou o início do seqüestro,
mas violou as normas da boa reportagem insinuando opiniões pessoais
a propósito da falta de segurança da população. Seu texto foi
mais opinativo do que descritivo. Caso assinasse, bem que caberia
como artigo, na editoria de opinião.
Já
o repórter do meio, nem tão verde quanto sua colega, nem tão
experiente quanto o companheiro cinquentão, identificou nominalmente
os agentes do drama (o que os outros não fizeram). Foi parcimonioso
nas palavras, não utilizou um único adjetivo e aplicou todas as
normas do malfadado Manual de Redação.
O
lead estava completo e a salvo de reparos, com os respectivos
subleads presentes no texto, além dos antecedentes e os conseqüentes
da notícia. Tecnicamente, sua reportagem estava perfeita. Mas
faltava-lhe alma, vibração, emoção, tesão de fazer um bom
jornalismo. Nem parecia que estava se referindo a pessoas, mas a
objetos inanimados e descartáveis.
Qual
das três versões vocês acham que publiquei? Com alguns reparos,
aqui e ali (como a identificação dos personagens), alguns consertos
em errinhos básicos de português (como a colocação de crase em
masculinos), minha escolha recaiu na matéria da repórter
inexperiente, mas que demonstrou que ainda não fora contaminada por
determinados vícios de quem já perdeu a gana pela competição.
O
escritor Aldou Huxley compara os fatos a um boneco de ventríloquo.
Sua narração depende de em quais “joelhos” eles estão
“sentados”. Ou seja, de quem lhes dará voz, movimentos, vibração
e vida.
Portanto,
não me venham com essa balela de que não se pode argumentar contra
“narrativas” dos acontecimentos. Mesmo os que testemunhamos, nos
parecem de um jeito em determinado momento e de outro, bem diferente,
em outra ocasião. Vemo-los de uma forma no calor da emoção e de
outra, não raro até oposta, quando temos a oportunidade de
racionalizar.
Por
isso, não vejo como desmentir Huxley quando afirma: “Os fatos são
como bonecos de ventríloquos. Sentados no joelho de um homem sábio
articularão palavras de sabedoria; noutros joelhos não dirão nada
ou dirão disparates, ou comprazer-se-ão em puro diabolismo”.
Portanto, o que vemos, lemos e ouvimos, diariamente, nos meios de
comunicação, não é a realidade, nua e crua, como querem nos
impingir, mas (talvez salvo alguma exceção que, todavia, não me
ocorre neste momento) meras “versões” de como ela “aparenta”
ser.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Exatidão em sua análise. É o que eu posso dizer.
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