domingo, 11 de junho de 2017

Um centenário


* Por Evandro Lins e Silva


Ao evocar a personalidade de Ari de Azevedo Franco logo vem à lembrança a imagem de um magnífico exemplar humano, magistrado ilustre, ministro do Supremo Tribunal Federal, professor universitário cuja presença ninguém podia ignorar onde quer que se encontrasse, fosse num palácio ou numa choupana. Expansivo, com raro poder de comunicação, semeava empatia, colhendo amizades inumeráveis e séquitos de admiradores. E tudo lhe era espontâneo, natural, na maneira de agir e na forma de dizer. Não perdia vez para um chiste, um trocadilho apropriado ou um comentário sarcástico, em tertúlias entre amigos, em congressos jurídicos, em debates forenses, em conferências, sempre provocando o riso ou o aplauso dos ouvintes.

Ari Franco tinha, em meio à sua vibratilidade, a noção exata do limite da conduta a ser seguida em cada instante de sua atuação como juiz. Era um extrovertido que sabia medir os impulsos de seu temperamento, para não chocar a gravidade e a sisudez das solenidades judiciais. Era um homem civilizado, um cosmopolita por intuição; sem ser viajado, nada tinha de provinciano. Magistrado e professor, tornou-se uma figura popular no Rio de Janeiro, por essa sua inata capacidade de convivência com toda a gente, do abastado ao carente, do poderoso ao humilde. Sabia encantar o clero, nobreza e povo.

De origem modesta, ainda estudante fez concurso e ingressou na Repartição Geral dos Correios. Muito moço, e também por concurso, começou a sua vida na magistratura, em 1928, na 3ª Pretória Criminal, passando a juiz de direito, como presidente do Tribunal de Justiça, cuja presidência ocupou no biênio 1953/54. Foi membro do Tribunal Regional Eleitoral do antigo Distrito Federal, e também o presidiu. Foi nomeado ministro do Tribunal Superior Eleitoral, do qual foi presidente entre 1961 e 1963.

Foi uma vida de magistrado, exercida desde cedo, com brilho, competência e inatacável probidade, até chegar à Suprema Corte, aspiração maior a que pode chegar o jurista, como coroamento de sua carreira.

Paralelamente, Ari franco professou no magistério superior, tornando-se livre docente, por concurso, da cadeira de Direito Penal da hoje Faculdade Nacional de Direito, da qual foi catedrático interino. Juntamente com grandes nomes da magistratura, do Ministério Público e da advocacia, como Roberto Lyra, Oscar Tenório e José Pereira Lira, participou da criação da faculdade de Direito do Rio de Janeiro (depois Guanabara), que se desenvolveu e hoje integra a Uerj. Tornou-se catedrático de Direito Judiciário Penal. Tal a sua influência, o seu dinamismo, a sua invulgar capacidade de administrador, logo foi escolhido diretor da nova escola de Direito. O seu carisma contagiou colegas e alunos, e a nova casa de ensino jurídico recebeu um apelido carinhoso: a “Faculdade do Ari Franco” .

Nos congressos e conferências a que comparecia, logo se tornava alvo de simpatia geral. Sucediam-se as homenagens recebidas nas comissões temáticas, nas sessões solenes, em todos os cantos onde estivesse. Não conheci magistrado que desfrutasse de tanta popularidade. Não foram as aulas dadas aos milhares de alunos a que lecionou nem os livros jurídicos ou teses acadêmicas que haja publicado nem as sentenças ou acórdãos proferidos nem os artigos feitos para jornais ou revistas especializadas, nada disso explicava a estima dos que o rodeavam, o agrado e o contentamento de todos que o ouviam. O segredo desse fascínio, espécie de imã atrativo espontâneo, estava numa das facetas mais expressivas e invejadas da inteligência humana: a memória, a faculdade de reter as idéias, as palavras antes adquiridas e guardadas anteriormente. Ari Franco fez o seu aprendizado quando, jovem ainda, trabalhava nos correios, na dependência das caixas postais, em que se identifica o assinante pelo número de sua posta-restante. Ao fim de algum tempo ele já sabia, de cor, o nome e o respectivo número de todos, todos - repetimos - os detentores de caixas postais. Presenciei, ninguém me contou, inúmeras vezes, quando Ari Franco, na presidência do júri, ao ler o nome dos jurados, acrescentava o número da caixa postal dos que haviam sido dela assinantes no seu tempo de trabalho nos correios. Causava pasmo, porque mais de vinte anos já se haviam passado.

No júri, ao tomar o compromisso dos sete jurados sorteados para compor o conselho julgador, depois de reproduzir, de memória, o texto legal, e sem olhar os cartões que continham a identificação dos jurados, dirigia-se a cada um deles, do primeiro ao último, sem errar a ordem do sorteio, e chamando-os pelo nome, por extenso, colhia o juramento - “assim o prometo” - de todos eles. O êxtase era especialmente dos jurados, surpresos pela referência a seus nomes, sem leitura de qualquer papel, como se o juiz já os conhecesse anteriormente.

A memória de Ari Franco era como se ele trouxesse no cérebro um computador, quando essas máquinas nem se sonhava viessem a existir. Se exibido em público para uma grande platéia, ficariam todos estupefatos, a querer descobrir o truque ou o ardil utilizado para que ele respondesse o nome e o número de todos os seus alunos, desde os primeiros até os daquele momento. Eram milhares no seu prolongado exercício do magistério. Mas ele o sabia de cor e disso dava demonstrações a cada momento quando encontrava qualquer discípulo e o identificava imediatamente, dizendo-lhe o nome e o número, olhando em torno, envaidecido pelo comentário elogioso por mais aquela façanha que, paradoxalmente, era um ato rotineiro, de seu cotidiano.

A memória individual e isolada é variável. Alguns guardam data, outros retêm nomes, números, imagens auditivas, visuais, verbos, adjetivos, a repetição de um texto. Há exemplos que vêm desde a Antigüidade.

Ari Franco merece o realce que lhe estamos dando como uma exceção entre os intelectuais de sua geração. Teve o que os léxicos registram como uma memória de elefante, para significar a capacidade excepcional de memorização, uma memória extraordinária. Espírito aberto, sentiu-se confinado nos primórdios de Brasília. Adorava o convívio dos amigos, dos colegas, dos alunos. Morava sozinho na nova capital, no único hotel que havia na época - o Brasília Palace. A sua consolação era o encontro diário com os colegas do tribunal, Ribeiro da Costa e Luiz Gallotti, quando os três chasqueavam da insipidez da cidade nascente. Gallotti não perdoava a mudança da capital, uma “prisão aberta” em que o morador tem a “obrigação de ir ao trabalho e o direito de dormir em casa”.

Anteontem, 21, foi o dia do centenário de Ari Franco. Fui seu amigo, por larga convivência, no foro, de modo geral e em especial no Tribunal do Júri, quando de sua presidência durante muitos anos, na década dos 40. Naquela época a minha advocacia era muito intensa perante os jurados, em julgamentos rumorosos e inesquecíveis. Amigos continuamos e quiseram os fados que me coubesse sucedê-lo na cátedra que ele ilustrou no Supremo Tribunal Federal.

Essas linhas são a homenagem que devo a um velho companheiro. São palavras de um contemporâneo que quer dar o testemunho das virtudes de um magistrado e professor que marcou época nos postos que desempenhou.

A memória do centenário de Ari Franco não pode passar em branco. É a memória dos seus contemporâneos, que não esqueceu um grande juiz e mestre notável de muitas gerações.
Jornal do Brasil - Rio de Janeiro - RJ, 23/03/2000



* Criminalista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras.

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