sábado, 3 de junho de 2017

O templo da humanidade



* Por Ivan Lins



Através do livro de Teixeira Mendes estava feita a minha adesão ao Positivismo, do qual, até então, nada conhecia, somente sabendo, de modo vago, pelo que ouvia em minha família, ter sido João Pinheiro seu adepto. Não contente com a leitura de tudo que meu pai possuía em torno de Augusto Comte e de sua doutrina, fui com ele, num domingo de maio de 1922, ao Templo da Humanidade erigido por Miguel Lemos e Teixeira Mendes no Rio de Janeiro. Íamos ouvir uma exposição da doutrina de Comte a ser feita, ao meio-dia, pelo Dr. Bagueira Leal.

O corpo do templo é formado por vasta nave retangular e um recinto em semicírculo, onde se acha o altar da Humanidade, constituído por grande quadro em cujo entablamento, acompanhando-lhe a curvatura superior, se lê, gravado em caracteres verdes, o verso de Dante:
"Vergine madre, figlia del tuo figlio."
Sobre uma coluna destaca-se, ao pé do quadro, o busto de Augusto Comte cercado por outro verso da Divina Comédia:
"Tu duca, tu signore e tu maestro!"
Na frente do busto está a tribuna de forma poligonal, ostentando no alto, em letras verdes, ainda um verso do florentino:
"Vien dietro a me, e lascia dir le genti."
Num dos lados do semicírculo se vê um quadro com Dante e Beatriz, e, ao longo da nave, abertos simetricamente nas paredes, quatorze nichos abrigam bustos policromos. Destes, treze evocam os principais promotores do progresso humano, que dão os seus nomes aos meses do Calendário Histórico instituído por Augusto Comte. Do lado direito, Moisés recorda a teocracia inicial; em seguida, Homero personifica os primórdios da poesia; depois Aristóteles - a filosofia dos antigos; Arquimedes a sua ciência; César a civilização militar; São Paulo o Catolicismo e, finalmente, Carlos Magno a civilização feudal. No lado esquerdo é glorificado o evolver da Humanidade nos tempos modernos, e o primeiro a aparecer é Dante encarnando a poesia épica; depois Gutenberg - a indústria; Shakespeare o drama; Descartes a filosofia; Frederico II a política; Bichat a ciência, e, por fim, no décimo quarto nicho, Heloísa relembra a mulher santificada pelo amor.
O oficiante iniciou a cerimônia com a saudação de São Bernardo à Virgem no derradeiro canto do Paraíso. E, assim, em meu primeiro contato com o Templo da Humanidade, deparei com Dante nada menos de sete vezes. Em seguida, aprofundando o estudo do Positivismo e tomando conhecimento do sistema de leituras aconselhado por Comte, saltou a meus olhos a Divina Comédia - "a incomparável epopeia em que até aqui reside o melhor título da arte humana", nas palavras do filósofo.
Envergando, com apuro, um paletó preto, colarinho duro e gravata preta, com a barba bem escanhoada, era o Dr. Bagueira Leal uma figura que se impunha pela dignidade e finura do trato. Era, além disto, um bom conferencista. Sem arroubos oratórios, a sua exposição prendia o auditório pelo seu espírito sintético e pela clareza com que apresentava os conceitos científicos, filosóficos, sociais e morais do Positivismo. Passei a ouvi-lo religiosamente aos domingos, muitas vezes acompanhado de meu pai, e nas chamadas festas sociolátricas instituídas pela Igreja Positivista. As suas preleções apresentavam um começo, um meio e um desfecho sempre harmoniosamente dosados, sendo grande a sua capacidade didática.
Considerando, desde então, o Positivismo um elemento primacial de minha felicidade, pondo fim à dúvida, à descrença e ao pessimismo, em que me deixara a perda do Catolicismo, julguei-me no dever moral de propagá-lo tanto quanto estivesse em mim, porque assim poderia beneficiar outros que passassem pela dolorosa crise moral e intelectual do que acabara de sair.

Pus-me, então, a ler os seis volumes do Curso de Filosofia Positiva e todas as obras de Comte e de seus discípulos biógrafos e comentadores, sem me deixar impressionar com as dissensões que os afastassem, num ou noutro ponto, da doutrina de seu Mestre. E li também com a sofreguidão de quem, atormentado pela sede do deserto, encontra água pura num oásis, as quatro seções da Biblioteca planejada por Comte: Poesia ou Literatura, Ciência, História e Síntese ou Filosofia.
Tem a seleção de obras organizada pelo filósofo o objetivo de sugerir e não o de excluir leituras. Partindo do princípio cartesiano de ser a leitura uma conversação com os autores, tomou, como norma, escolher, em cada gênero, os maiores escritores e as suas obras unanimemente consideradas mais perfeitas. É assim que a parte literária de sua seleção começa com Homero, Ésquilo, Sófocles, Aristófanes, Píndaro e Teócrito entre os gregos antigos, seguidos de Plauto, Terêncio, Virgílio, Horácio, Lucano, Ovídio, Tibulo e Juvenal, entre os romanos.
Como amostra típica da Idade Média, indicou os Fabliaux recolhidos, no século XVIII, por Legrand d'Aussi, seguidos de Dante, Petrarca, Ariosto, Tasso, Metastásio, Alfieri e Manzoni. Além do teatro espanhol escolhido, abrangendo as melhores peças de Lope de Vega, Calderón de La Barca, Tirso de Molina e demais dramaturgos castelhanos, incluiu o Dom Quixote e as Novelas exemplares de Cervantes, seguido de Corneille, Molière, Racine, Voltaire, La Fontaine, Le Sage e Chateaubriand. Dos ingleses, figuram Shakespeare, Milton, De Foe, Goldsmith, Fielding, Walter Scott e Byron, completados por Goethe como representante da Alemanha, e as Mil e uma noites, os populares contos árabes.
As obras do setor científico constituíam um roteiro provisório, porque a ciência está sempre em desenvolvimento, e incluíam o que então havia de melhor sobre as ciências básicas - matemática, astronomia, física, química, biologia, sociologia e moral. Na parte da História, estão arrolados os mais importantes autores do gênero desde Heródoto, Tucídides, Plutarco, César, Tácito, D'Ávila, Commines, Colline, Gibbon, Robertson, Hallam, Hume, Bossuet, Abade Claude Fleury, Abade Barthélemy, até Voltaire, Winchkelmann, Mignet, Cook e Chardin.

Finalmente, na seção de filosofia, além da Bíblia e do Corão, encontram-se A política e a moral de Aristóteles, A cidade de Deus, As confissões e o Comentário do sermão da montanha por Santo Agostinho, o Tratado do amor de Deus de São Bernardo, a Imitação de Cristo por Tomás de Kempis, o Discurso sobre a História Universal por Bossuet, os Ensaios filosóficos de Hume, a História da Astronomia por Adam Smith, o Quadro dos progressos do espírito humano, por Condorcet, a Política extraída das Sagradas Escrituras por Bossuet, o Tratado do Papa de Joseph de Maistre, a Interpretação da natureza e a Dissertação sobre os cegos e surdos de Diderot, o Discurso do método de Descartes, o Novum organum de Bacon, as Relações do físico e do moral por Cabanis, as Cartas sobre os animais de Jorge Leroy, o Tratado sobre as funções do cérebro por Gall, os Pensamentos de Cícero, Epicteto, Marco Aurélio, Pascal e Vauvenargues, as Considerações sobre os costumes por Duclos, entre muitos outros livros de igual valia, que constituem as mais altas manifestações do espírito humano na poesia, na ciência, na história e na filosofia.
Consagrando-me, com entusiasmo, à leitura, desde menino, a biblioteca aconselhada por Augusto Comte, por mim avidamente procurada e adquirida nos sebos, principalmente do velho José Matos e do meu querido Carlos Ribeiro, foi para mim um maná do céu. A fim de aproveitá-la devidamente muito contribuiu a cultura humanística que adquirira ao ler os clássicos romanos nas aulas com meu pai, que também me orientara no trato do que apresentavam de mais característico os escritores do Brasil, Portugal, Espanha, França, Itália e Inglaterra.

Na Igreja Positivista frequentei, além das conferências dominicais do Dr. Bagueira Leal, um esplêndido curso de Filosofia Primeira, ministrado por Sílvio Vieira Souto, e uns comentários à Síntese subjetiva por Luis Bueno Horta Barbosa, antigo catedrático por concurso do Ginásio de Campinas.
Travei então conhecimento com Teixeira Mendes e com vários jovens positivistas, dos quais me tornei amigo: Paulo e Trajano de Berredo Carneiro, Rodolfo Paula Lopes, filho do catedrático de Biologia do Colégio Pedro II, Rubem Descartes de Garcia Paula, Benjamin Barradas, Alberto Pizarro Jacobina, Jair Porto, Henrique Baptista da Silva Oliveira, Vinicius de Berredo, Carlos Palhano de Jesus e Luís Hildebrando Horta Barbosa.
Em 1924 Paulo Carneiro nos deu, no pavimento térreo da residência do Professor Rodolfo Paula Lopes, na Rua Silveira Martins, um excelente curso de química sob a orientação positivista, ao qual assistimos os dois Paula Lopes, pai e filho, João Francisco de Sousa, Rubens Lopes e José de Albuquerque, todos três estudantes de medicina, Alberto Pizarro Jacobina, Benjamin Floriano Barradas, Francisco Baiardo Horta Barbosa, Luis Hildebrando Horta Barbosa e eu.
Manifestação típica do meu estado de espírito, nessa quadra, é o discurso que, em 24 de novembro de 1925, proferi na Sala Daniel Encontre do Templo da Humanidade, ao encerrar-se o curso de Filosofia Primeira ali ministrado por Sílvio Vieira Souto a um grupo de moças e rapazes positivistas. Desse discurso extraio alguns tópicos característicos:
- A Religião da Humanidade é a síntese suprema em que se resume o labor das gerações que nos precederam, termo radioso alcançado por nossa espécie, depois de haver passado pelo Fetichismo, pelo Politeísmo e pelo Monoteísmo. Em cada uma dessas fases, que formam a evolução social preparatória, foi feita a cultura progressiva dos três atributos de nossa natureza: o sentimento, a inteligência e a atividade. A soma de esforços representada por essas três fases é imensa. Os seus obreiros, escalados através dos séculos, estão unidos pelo desejo comum de melhorar nossa espécie. Reconheçamo-lhes os serviços, venerando-lhes a memória e inspirando-nos em seu exemplo para levar a cabo a evolução social definitiva. O que eles prepararam e buscaram, com tamanho afã, pode tornar-se uma realidade graças ao Positivismo. A felicidade humana, que se idealizara de tantos modos nas utopias celestes e terrestres, construídas por numerosas almas nobres, há de ser obtida através dessa doutrina tão bela quanto verdadeira. Ela renova, melhorando-o, o exercício do sentimento, do pensamento e da atividade. Ao antigo egoísmo das razões teológicas substitui motivos sociais inteiramente desinteressados. Em vez do regime arbitrário e confuso das vontades sobrenaturais, introduz a exatidão das leis demonstráveis na explicação da Ordem Universal. Na política substitui o dever ao direito, a indústria à guerra e estabelece, entre os sentimentos, as ideias e os atos uma convergência jamais sonhada. É, portanto, a mais profunda revolução e a mais universal a que jamais haja aspirado a Humanidade. Fundar a harmonia geral da espécie, ao consolidar a Família, a Pátria, e a Igreja, elementos eternos da existência social, é alicerçar suas relações necessárias em bases mais seguras. Aperfeiçoando, por toda parte, a Ordem Universal, sobretudo humana, a Religião Final não concorre menos para o progresso: desenvolve, em todos os sentidos, a natureza do homem e dirige todos os seus esforços para a conquista dos tesouros espirituais: o belo, o bom e o verdadeiro. Libertando, em nome da ciência e da moral, de degradante miséria a imensa classe daqueles que concorrem para produzir toda a riqueza, oferece aos proletários as bases de uma família condigna. Respeitando a ordem, assegura a liberdade e separa os dois grandes poderes, teórico e prático. Reconstituindo o poder espiritual, o eleva à sua completa generalidade, tornando-o suscetível de estender-se à espécie inteira.
E, mais adiante, prosseguia eu: "Congreguemo-nos, pois, meus amigos, para apressarmos o advento dessa era em que por toda parte o homem, cidadão da Terra, estenderá ao homem a mão fraterna, a fim de enriquecer a Pátria comum, fecundando e abençoando essa mesma Terra de que depende a existência geral, melhorando-a e embelezando-a para transformá-la enfim no Éden sonhado nos primórdios da Humanidade. Para tal é imprescindível que a ação dos positivistas sobre os seus contemporâneos se exerça através do exemplo de um procedimento ilibado. Persuasão, demonstração, devotamento, eis os meios que devemos empregar para o prevalecimento da religião universal. Desprendamo-nos dos interesses pessoais que nos aferram ao presente e nos dirijamos com firmeza rumo ao futuro. Vivamos, em espírito, com os nossos descendentes para fazê-los felizes. Que o amor da Humanidade inflame as nossas almas e guie os nossos passos."
Como se vê dos extratos aqui transcritos, o encerramento do curso de Filosofia Primeira, em novembro de 1925, proficientemente ministrado por Sílvio Vieira Souto na Igreja Positivista, propiciou-me calorosa profissão de fé. Ao lê-la cinquenta anos mais tarde, penso que os jovens de hoje podem considerá-la ingênua e utópica. Hão de concordar, porém, que, sem entusiasmo, nada se consegue de grande e de nobre no mundo. Se as duas guerras mundiais de nosso século exacerbaram o egotismo de nossa espécie, levando os homens, embrutecidos pelo terror do amanhã, a se degradarem em gozos fáceis e desordenados, se romperam o pequeno verniz de moralidade da civilização dominante na Belle Époque, não deixa de ser verdadeiro que grande parte da humanidade continua em busca de um ideal que a eleve e lhe restitua a consciência de sua própria dignidade.
(Fragmento de Memórias, Revista Brasileira, fase VI, nº 3, 1977.)


* Jornalista, professor, pensador, ensaísta e conferencista, membro da Academia Brasileira de Letras.

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