sexta-feira, 9 de junho de 2017

A ditadura ainda não é um fantasma



* Por Urariano Mota

Na semana passada, com o Exército nas ruas de Brasília para reprimir a “baderna” nos protestos contra Temer, mais de uma pessoa lembrou as imagens do golpe de 1964.

Tropas nas ruas de Brasília provocaram lembranças da ditadura militar.

Nessa associação entre o que foi e o presente, alguns analistas falaram em fantasmas da ditadura que voltavam às ruas. Mas penso que não é fantasma um regime ainda insepulto, apesar do novo tempo da democracia que vivemos. Quero dizer, não pode estar morto esse tempo que não foi assimilado como tragédia. Os crimes contra os direitos humanos dessa época ainda estão impunes. E mais grave, o drama humano dos assassinados e guerreiros não é sequer conhecido pelos mais jovens. 


Nos limites deste espaço, divulgo um trecho do meu próximo romance “A mais longa duração da juventude” nas linhas a seguir.

Por que Soledad Barrett caiu no vulgaríssimo laço do Cabo Anselmo? Eu não posso, ninguém pode escrever um teorema das relações humanas. Para os sentimentos não há um conjunto de frases lógicas, num crescendo que se revela ao fim um desastre. Numa tragédia, CQD, Como Queríamos Demonstrar. Não sou mecânico ou cruel, porque falo à luz da viva experiência. Nos anos da ditadura, os militantes mais ardorosos queriam imprimir no coração o imediato de suas convicções partidárias. Às vezes nem era preciso gravar a impressão do panfleto, porque já estava inscrito. Quero dizer, havia mistura de sentimentos, vários, dos mais piedosos da formação cristã a palavras de ordem…


Indivíduo fino e escorregadio, o Cabo Anselmo falou a uma repórter numa entrevista. A jornalista de bom coração lhe fez a pergunta:

- Você amava Soledad?

Ele recebe a susto o golpe da pergunta e procura ganhar tempo:

- Eu?.... Olha, é um sentimento difícil pra mim. Ela era uma pessoa linda, poeta, falava várias línguas... O que aconteceu com ela não foi culpa minha, entende? Foi ela quem se condenou, não fui eu. Por mim, ela estava fora do massacre.

- E por que você não a avisou?

- Está louca? Eu ia ser morto se abrisse pra ela o que eu sabia.

- Morto por quem? Por ela ou pela repressão?

- Por ela, claro. Sol era uma pessoa muito ideológica. Cruel, com aquela carinha de santa.

- Ela era cruel? – a repórter pergunta tendo na lembrança a imagem do corpo de Soledad no necrotério. – Cruel?

- Você nem imagina do que são capazes os comunistas. Eles matam mesmo.

- Você está vivo.

- Sim, só Deus sabe como. Eu fui o sorteado pra sobreviver.

A repórter para e não quer saber se ele atribui à roleta da vida o plano sistemático de infiltração, entrega de companheiros e mortes. Ele, o sorteado. A ironia não deve descer a esse ponto. A repórter se preocupa com algo para ela mais essencial.

- Mas você amava Soledad?

- Olha... eu amava Soledad. Mas um amor à minha maneira, entende?

- Como assim, à sua maneira?

- Assim... eu tinha afeição, amor por ela. Mas o amor pra mim é uma coisa prática, entende?

- Entendo. Sacrificar a sua vida pela amada, nunca.

- Isso é romantismo.

- E você se ama, Anselmo?

- Claro. Eu sou um cara normal.

Então Anselmo sorri com um sorriso que não ouso adjetivar. Ele poderia ter falado: ‘Amo a mim mesmo acima de todas as coisas. Amo só e somente a mim’, e não seria mais eloquente que a fala ‘eu sou um cara normal’. Ao se expressar assim, ele também quis dizer: se fizerem um matadouro, se sangrarem uma mulher feito porco, eu não sou o porco. Esse bicho destripado não me diz respeito. Não importa se o porco é Soledad, se lhe arrancaram o feto a porrada, não é comigo, eu não sou a porca Soledad. Eu sou um cara normal. Eu me amo. Eu me amo a mim mesmo, só a mim, somente a mim e a mais ninguém. Com todas as minhas forças, esperteza e inteligência, durmo bem, do alto do meu conforto. Porco é quem é sangrado na tortura. Eu, coitado de mim, tenho horror à sujeira do sangue. Eu sou um cara educado, com alma de artista, de formação cristã, entende? Mas não sou Cristo. Nem Cristo nem porco. 



* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros





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