Malária poesia e outros bichos
* Por
José Ribamar Bessa Freire
"Ah!
a poesia aqui,
meu
filho,
é uma doença tropical".
(Aldísio Filgueiras - Malária e outras canções
malignas)
Numa linguagem
delirante e febril que explode termômetros, o poeta Aldísio Filgueiras
diagnostica ironicamente a poesia como uma patologia local. Essa relação da
literatura e doença já havia sido explorada de outra forma, em 1910, pelo
jornal The Porto Velho Marconigram, publicado em inglês, destinado aos
trabalhadores estrangeiros da Madeira-Mamoré - a "ferrovia do diabo".
O pequeno semanário trazia sob o titulo a frase em espanhol:
- La vida sin literatura y quinina es muerte.
Agora, a ideia de que
as duas juntas geram vida é reafirmada no livro "Malária no Amazonas:
registros e memórias", lançado no sábado (10), às 11 hs, na sede do ICBEU
em Manaus, pela Editora Valer, com grande afluência de público. No evento, antes
da sessão de autógrafos, os dois autores se pronunciaram, assim como o médico
Wilson Alecrim e este locutor que vos fala que faz aqui uma síntese do que foi
dito.
Os autores Auxiliadora
Bessa Barroso e Raul Amorim, sanitaristas - ela educadora em saúde e ele
malariologista - recuperam essa imagem de que, para a saúde, a literatura é tão
vital quanto a quinina. Se faltar uma delas, a morte triunfa. A metáfora define
bem o livro. Quinina aqui designa o combate à malária no Amazonas. E literatura
é o relato escrito das experiências que ambos viveram como soldados nas
trincheiras da Campanha de Erradicação da Malária (CEM), da Superintendência de
Campanhas de Saúde Pública (SUCAM) e da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA).
Se a memória sobre o
combate travado contra a doença for apagada, a derrota é certa. É isso que afirma Marcus Barros, ex-reitor da
Universidade Federal do Amazonas, médico com experiência de meio século como
infectologista. "É muito importante para o controle dessa grande endemia,
que recuperemos parte de sua história aqui na região, para que todos os
envolvidos, atores e vítimas, aprendamos os mecanismos pelos quais poderemos
controlá-la" - ele escreve na apresentação.
Duende da Amazônia
Foi o que fizeram os
autores que saíram em busca da trajetória da malária pelo planeta até chegar na
Amazônia, destacando o período da borracha, do final do séc. XIX aos anos 1950.
Tiveram uma trabalheira porque os arquivos herdados pela FUNASA não foram
preservados e parte da documentação foi destruída. Os dois pesquisadores
buscaram então acervos pessoais de profissionais: relatórios técnicos,
pareceres, diários de campo, formulários, dados estatísticos, resumos de
reuniões, depoimentos verbais, fotografias, mapas, gráficos, registros de
observações diretas. Há uma rica documentação iconográfica, com fotos do
arquivo pessoal da autora.
Construíram um texto
agradável de ler, complementando fontes primárias com documentos oficiais do
Ministério da Saúde e de outros órgãos: leis, decretos, portarias.
Reconstituíram a viagem do sanitarista Oswaldo Cruz por ocasião da construção
da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em 1910, quando ele observou e estudou a
doença, depois de praticar dezenas de autópsias no Hospital de Candelária. Os
autores calculam que 6.200 óbitos de trabalhadores ocorreram só ao longo da
linha de construção da ferrovia.
No cemitério de
Candelária, pertinho do centro de Porto Velho, foram sepultados pelo menos
1.593 estrangeiros oriundos de 22 países, vítimas da malária denominada de
"duende da Amazônia" por Oswaldo Cruz. Mas há um segredo lá enterrado
que os autores não contam porque não são fofoqueiros, mas eu, que me amarro num
bafão, vou mexericar. O Candelária, cemitério que só enterrava gringo, abriu
exceção para uma única brasileira, Lydia Xavier, porque - dizem as más línguas
- ela era amante de um engenheiro norte-americano. Seu túmulo tem inscrição em
inglês. Pronto. Falei.
Lydia e as vítimas da
malária não leram o artigo que Oswaldo Cruz publicou no "The Porto Velho
Marconigram", com descrição e classificação da doença no alto Madeira. A
matéria da primeira página da edição de 19 de novembro de 1910 descreve ainda a
luta do dr. Garrett, com um tamanduá no meio da floresta quando "a fera,
com uma pata poderosa, rasgou a bota do médico e feriu-lhe a perna". Os
bichos se defendiam da forma que podiam daquele enorme desastre social que foi
a construção da ferrovia, uma espécie de Belo Monte da época.
O Carapanã
A ferrovia nunca
funcionou, muitos trabalhadores jovens morreram e outros foram expulsos por
animais revoltados com a intrusão predatória. A malária ficou. De lá para cá, o
combate contra o mosquito transmissor teve altos e baixos. "Infelizmente
as perspectivas são sombrias por ser uma doença que atinge predominantemente a
população de baixa renda, de áreas rurais e de exclusão social" comenta no
livro o médico diretor-presidente da Fundação de Vigilância em Saúde do
Amazonas, Bernardino Albuquerque.
Isso fica claro quando
os dois autores usam como fontes os relatórios produzidos por eles próprios na
época em que atuaram ativamente nas instituições de controle da malária. Dão um
testemunho pessoal de suas vivências. Analisam o esforço mundial concentrado
para a erradicação da doença e o trabalho desenvolvido no Amazonas. Para isso,
encontraram ainda uma manancial de dados no Boletim Informativo do Setor Amazonas
da CEM - O Carapanã - cuja coleção lhes permitiu reconstruir uma boa parte da
luta.
O Serviço Nacional de
Malária (SNM), criado em 1941, fazia borrifação intradomiciliar, coletava
sangue, distribuía antimaláricos e efetuava censos nas residências cadastradas,
identificadas porque em suas portas eram pintadas com três letras azuis a sigla
SNM, traduzidas pelos cabocos da oposição como "Severiano Nunca
Mais", em referência à candidatura de Severiano Nunes, da UDN (vixe,
vixe), que foi prefeito, deputado estadual e federal, além de senador.
O livro que acaba
mexendo com a memória da minha geração, trata do advento do DDT e da polêmica
em torno do seu uso. Está tudo lá: o emprego do sal cloroquinado iniciado em
1959 com os problemas
técnico-operacionais daí derivados, a abertura de grandes rodovias e a
implantação de projetos de mineração com graves consequências sobre a saúde dos
colonos assentados na região. O balanço geral é trágico. Wilson Alecrim, médico
e ex-coordenador da SUCAM, lembra no prefácio que milhares de nordestinos
pereceram tragicamente na floresta amazônica, vitimados pelas enfermidades
endêmicas, entre elas a malária - "a rainha das doenças".
É assim que a malária
é conhecida, diz Pedro Tauil, professor da UnB, ele também apresentador do
livro, que aliás conta com comentários de um timaço de autoridades reconhecidas
no tema. "A leitura desse livro enriquece a compreensão dos determinantes
da incidência da malária na Amazônia, bem como das medidas de controle
adequadas à realidade da Região" - escreve Tauil. O leitor vai
concordar. É um livro de interesse dos
historiadores, dos cientistas sociais, do pessoal da área de saúde, dos
ambientalistas, mas também de qualquer pessoa que ama a Amazônia.
A experiência da luta
pela erradicação da malária pode ajudar na
batalha que se trava hoje e que, segundo os autores, está sendo perdida
por nós. "O Anopheles darlingi e o
Plasmodium, durante o período estudado, mostravam-se tão fortes na Amazônia,
como o Aedes aegypti e o Zika se apresentam hoje no Brasil" Nos anos
70-80, "os indicadores da malária se elevaram significativamente em toda a
Região Amazônica, e áreas já consideradas livres foram surpreendidas com o
restabelecimento da transmissão dessa doença. Na cidade de Manaus, onde há 13
anos não se registravam casos autóctones, a malária foi reintroduzida, a partir
de 1988, em locais de expansão da periferia urbana (ocupações-Zona
Leste)". O livro é um alerta para os perigos que estamos enfrentando.
*
Jornalista e historiador.
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