domingo, 12 de março de 2017

A falta que ele faz


* Por Pablo Uchoa



De Londres
 

S
e eu soubesse que ia sentir tanta falta dele, teria pensado duas vezes. E imaginar que foi culpa minha, que subestimei sua importância, renegando-o com um gesto gratuito quando o agente imobiliário avisou:

-O banheiro da sua quitinete é do lado de fora, tem problema?

- Nhééé! – respondi. Não foi sequer um “não” pronunciado, um “não” de quem parou e pensou. Pelo contrário, foi um “não” impensado, imaturo. Um “não” de menino?

Pois ao entrar nesta quitinete de paredes recém-pintadas em Londres, sonhei que rejuvenescia uma década. Rapazola como aquele que chegou em São Paulo carregando nada além de uma trouxa e o coração nas mãos. Lancei meu olhar sobre os doze metros quadrados da minha quitinete e me senti um rei inspecionando seus domínios. Eram apenas doze metros quadrados, mas não importa, eram meus primeiros domínios.

Caminhei pelo corredor apertado que levava ao elevador e indaguei ao porteiro:
-Quer dizer então que isto é São Paulo?
-Ô! – respondeu meu conterrâneo.

Minha quitinete tinha um quadro com várias bundas pintadas, e uma parede inteiramente tomada por uma janela de vidro. Daquela janela eu assistia ao espetáculo do corre-corre no bairro de Pinheiros, coração da minha vida paulistana. Debruçado, eu esquecia o pequeno estéreo tocando qualquer nota e me desmanchava passeando os olhos pelas estrelas, encantado pelo meu primeiro amor.

- Quando vi você, me apaixonei… - cantava de lá Chico César, e eu cantava junto nem sei se para aquela mulher ou se para meus sonhos, os anos de universitário, a cidade, o bairro de Pinheiros, enfim, os doze metros quadrados da minha quitinete.

Quem vai controlar um turbilhão de lembranças destes? Só mesmo minha mãe, a quem a experiência já ensinou a velha filosofia de que ninguém se banha duas vezes nas mesmas águas de um mesmo rio:

-Mas sua quitinete em São Paulo tinha banheiro… - ela alertou.

E eu me avexei:
-Ora, mãe, que preocupação mais pequeno-burguesa!

Nos dias seguintes à assinatura do contrato, fui sendo obrigado a revelar a minha mãe o verdadeiro teor das cláusulas:
-Meu filho, pelo menos só quem usa este banheiro é você?

Estanco, pigarreio. Na verdade…

-Divido o banheiro com duas outras quitinetes, mãe.
-Duas, meu filho? – vejo minha mãe apalpar o coração. – Mas pelo menos o banheiro é bem do ladinho do seu quarto.
-Um lance de escadas.
-Oh! – ouço minha mãe desfalecendo. – E o condomínio manda limpar o banheiro com freqüência?
-Não, mãe – admito – a limpeza é por conta dos moradores.
(Um último suspiro de minha velha, cuja curiosidade acerca de minha quitinete se esgota antes de algum mal súbito).

Sento-me, pois, muito burguês na ponta da cama, observando as malas acomodadas sobre o armário. O mal de ter um banheiro externo não é vestir-se cada vez que se necessite ir à privada; é cruzar, pelo corredor, com algum vizinho indesejável, e experimentar a sensação desagradável de haver deixado, desguarnecidos, seus domínios atrás da porta que acaba de se fechar.

Depois do choque inicial, minha mãe retomou o senso do humor e me sugeriu, entre risos, “volte aos tempos do penico sob a cama para qualquer eventualidade noturna”. Mas não, senhora.

Já encomendei ao agente imobiliário que me avise quando vagar o próximo estúdio com banheiro. Depois que houver com sucesso anexado aos meus domínios uma ducha, uma pia e uma toilete, reviverei meus tempos de Pequeno Príncipe, soberano de um minúsculo planeta pairando quilômetros acima desta galáxia.

Pensarei com satisfação na sabedoria popular que ensina, a verdadeira privacidade é quando se pode ir ao banheiro de portas abertas. E lembrarei com glória dos dias difíceis, heróicos, de quando me sentava na ponta da cama e constatava, absorto, a falta que ele faz.

* Esta crônica faz parte da série “Obviedades londrinas”, que tem como pano de fundo a capital inglesa.

(*) Cronista e editor do site www.narizdecera.jor.br. Vive atualmente na Inglaterra, dedicando-se a pesquisas no Institute for the Studies of the Americas, da Universidade de Londres. Autor do livro-reportagem “Venezuela: A Encruzilhada de Hugo Chávez” (Ed. Globo, 2003), menção honrosa no prêmio Vladimir Herzog 2004.





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