A falta que ele faz
* Por Pablo Uchoa
De Londres
Se eu soubesse que ia sentir tanta falta dele, teria pensado duas vezes. E imaginar que foi culpa minha, que subestimei sua importância, renegando-o com um gesto gratuito quando o agente imobiliário avisou:
-O banheiro da sua quitinete é do lado de fora, tem problema?
- Nhééé! – respondi. Não foi sequer um “não” pronunciado, um “não” de quem parou e pensou. Pelo contrário, foi um “não” impensado, imaturo. Um “não” de menino?
Pois ao entrar nesta quitinete de paredes recém-pintadas em Londres, sonhei que rejuvenescia uma década. Rapazola como aquele que chegou
Caminhei pelo corredor apertado que levava ao elevador e indaguei ao porteiro:
-Quer dizer então que isto é São Paulo?
-Ô! – respondeu meu conterrâneo.
Minha quitinete tinha um quadro com
várias bundas pintadas, e uma parede inteiramente tomada por uma janela de
vidro. Daquela janela eu assistia ao espetáculo do corre-corre no bairro de
Pinheiros, coração da minha vida paulistana. Debruçado, eu esquecia o pequeno
estéreo tocando qualquer nota e me desmanchava passeando os olhos pelas
estrelas, encantado pelo meu primeiro amor.
- Quando vi você, me apaixonei… - cantava de lá Chico César, e eu cantava junto nem sei se para aquela mulher ou se para meus sonhos, os anos de universitário, a cidade, o bairro de Pinheiros, enfim, os doze metros quadrados da minha quitinete.
Quem vai controlar um turbilhão de
lembranças destes? Só mesmo minha mãe, a quem a experiência já ensinou a velha
filosofia de que ninguém se banha duas vezes nas mesmas águas de um mesmo rio:
-Mas sua quitinete
E eu me avexei:
-Ora, mãe, que preocupação mais
pequeno-burguesa!
Nos dias seguintes à assinatura do
contrato, fui sendo obrigado a revelar a minha mãe o verdadeiro teor das
cláusulas:
-Meu filho, pelo menos só quem usa este
banheiro é você?
Estanco, pigarreio. Na verdade…
-Divido o banheiro com duas outras quitinetes, mãe.
-Duas, meu filho? – vejo minha mãe
apalpar o coração. – Mas pelo menos o banheiro é bem do ladinho do seu quarto.
-Um lance de escadas.
-Oh! – ouço minha mãe desfalecendo. – E
o condomínio manda limpar o banheiro com freqüência?
-Não, mãe – admito – a limpeza é por
conta dos moradores.
(Um último suspiro de minha velha, cuja
curiosidade acerca de minha quitinete se esgota antes de algum mal súbito).
Sento-me, pois, muito burguês na ponta da cama, observando as malas acomodadas sobre o armário. O mal de ter um banheiro externo não é vestir-se cada vez que se necessite ir à privada; é cruzar, pelo corredor, com algum vizinho indesejável, e experimentar a sensação desagradável de haver deixado, desguarnecidos, seus domínios atrás da porta que acaba de se fechar.
Depois do choque inicial, minha mãe retomou o senso do humor e me sugeriu, entre risos, “volte aos tempos do penico sob a cama para qualquer eventualidade noturna”. Mas não, senhora.
Já encomendei ao agente imobiliário que me avise quando vagar o próximo estúdio com banheiro. Depois que houver com sucesso anexado aos meus domínios uma ducha, uma pia e uma toilete, reviverei meus tempos de Pequeno Príncipe, soberano de um minúsculo planeta pairando quilômetros acima desta galáxia.
Pensarei com satisfação na sabedoria popular que ensina, a verdadeira privacidade é quando se pode ir ao banheiro de portas abertas. E lembrarei com glória dos dias difíceis, heróicos, de quando me sentava na ponta da cama e constatava, absorto, a falta que ele faz.
* Esta crônica faz parte da série “Obviedades londrinas”, que tem como pano de fundo a capital inglesa.
(*) Cronista
e editor do site www.narizdecera.jor.br. Vive atualmente na Inglaterra,
dedicando-se a pesquisas no Institute for the Studies of the Americas, da
Universidade de Londres. Autor do livro-reportagem “Venezuela: A Encruzilhada
de Hugo Chávez” (Ed. Globo, 2003), menção honrosa no prêmio Vladimir Herzog
2004.
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