quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Um olhar profundo sobre a nossa tragédia

* Por Emanuel Medeiros Vieira


O Tambor, de Herculano Farias, é um forte e belo livro de contos. Antípoda de modismos ou facilitarismos, da mediocrização do fazer artístico imposto pela mídia, da camuflagem das tensões da vida brasileira, sistemática e deliberadamente forçada pelas elites e classes dominantes nacionais, a literatura de Herculano Farias é visceralmente um mergulho nas essências e na busca de uma verdade humana.

Diante deste “espírito de tempo”, cínico e escamoteador, que pretende a resignação de todos nós, a neutralização de qualquer foco de inquietação, Herculano lanceta o tumor. E vai fundo. Não dá tréguas. Não é róseo, não concilia porque não quer enganar. Numa ficção e num estilo de alta voltagem, num ritmo que não dá fôlego, que prende a respiração, inexorável por um sentido de fatalidade, ele nos convoca a uma participação intensa. Ele não é o porta-voz de um modelo que a tudo quer banalizar — até o mal. Rema contra a corrente da mediocridade, do amortecimento do pensar, onde sempre parecem vigorar não apenas a mentira e o cinismo, mas a desesperança que inunda toda a vida brasileira. O autor pisa fundo, não mistifica nada. Não faz um arremedo de literatura, não faz contos “dispensáveis” ou inúteis — uma inutilidade e falta de verdade humana que pare¬cem impregnar certas produções da nossa literatura recente. Essa ficção estimulantemente tensa é um olhar fundo sobre a nossa tragédia. O mundo primitivo, do “começo das coisas”, que ele capta, é o universo de todos nós, que a urbanização fre¬nética do país não consegue esconder.

Sua ficção aponta para essas trapaças morais com as quais temos que conviver cotidianamente, com esse individualismo pequeno burguês eivado de cinismo e da ética do “salve-se quem puder”. Essa consciência agudamente “trágica” nunca é panfletária ou superficial. Teria a tentação de chamá-la de “ontológica”, de radicalmente fundamental.

Só um criador com seu fôlego, com suas antenas ligadas, com sua percepção, com essa feroz necessidade de dar voz aos que não a têm, poderia detectar a “ética do nosso tempo”, da proliferação de consciências alienadas, da mentira erigida como verdade, onde o arcaico passa como moderno, o secundário como essencial. Sim, ela capta degradação do sentido das palavras, desgastadas pelo uso mistificador. Que “modernidade” é essa? Neste reinado da palavra que esconde mais que clarifica, artista que é, Herculano Farias não fala só por ele. Fala por todos nós, nesse trânsito entre a inter-subjetividade das consciências. Fala por toda essa humanidade que está condenada a “vegetar” como “res”, coisa, seres alienados de si mesmos. Seres (alguns) que vivem como bichos.

O Tambor é um sopro fortíssimo. Os contos que enfeixam o livro só por si denunciam essa falsa calmaria, essas águas paradas, essa viscosidade, essa pseudo moral da época, mesqui¬nha e degradante.

Mas o autor, avesso aos tecnocratas de todos os quilates, não cai na frieza parnasiana nem no espírito “bem pensante”, que não se envolve nem suja as mãos. É exatamente o descarnamento do estilo, a economia de meios, o ir direto ao essencial, que nos comove tanto. Que tornam os contos do autor catarinense tão pungentes. Por isso nunca ficamos indiferentes ao final da leitura. (Alguns ficarão perplexos, com a boca crispada e só depois perceberão que essa contundência e violência não são criações do autor. Estão aí. No mundo.)

Os contos de O Tambor nunca caem no naturalismo, nem nos clichês sentimentais degradados do “gosto médio” — manipulados pela moral hegemônica. Pelo contrário. Os textos vão ao essencial. Ao fundo. Herculano não pinta nem glorifica Napo¬leões, nem tecnocratas de plantão. Essa paixão funda — que sempre penetra no espírito dos grandes artistas — perpassa o livro sem subterfúgios, engodos ou desculpas. É ausência do su¬pérfluo — no estilo, no uso das palavras, que mais comove. Até pelo implícito. É a chamada arraia-miúda que ele dá voz, contempla essa humanidade primitiva, abandonada em todos os confins. Do Brasil ou da alma.

“O Tambor” — o excelente conto que dá título ao volume — é também uma metáfora sobre todos os despossuídos e da¬nados da nossa terra — e das outras. Mais que isso. Quem sabe, os personagens querem resgatar, pelo menos um pouco, a digni¬dade perdida, usurpada — o tambor é tudo aquilo que lhes foi negado na travessia do tempo, (a posse de um objeto, uma vida digna, uma esperança, qualquer que seja).

Negro Odete, de “Rio Abaixo”, é um personagem marcan¬te, que não poderá entender o seu destino fatal, inocente que é, naquele universo dos velhos mortos, do barqueiro que ao final o denuncia e com quem trocara bens, dos policiais, dos porcos, de toda a gente humilde: “Negro Odete subiu no barco com os homens e não entendeu porque o levavam para a cidade, com as mãos presas atrás das costas. Desciam o rio e falavam o tempo todo, mas Negro Odete não os ouvia tinha horas, pensando na tapera, no garapuvu, nos peixes e na vara de pescar.”

Vivendo um tempo primitivo, os personagens sentem que as coisas acontecem, mas eles nunca são agentes dessa construção. Quase sempre são vítimas. Vitimas dessa “fatalidade” que a todos traga, não só aos homens, mas aos bichos, à própria natureza.

O conto “Rio Acima” vale mais que um tratado sobre a alienação (nesse sentido lembra “São Bernardo” do velho e bom Graciliano Ramos). O personagem narrador, capataz de uma fa¬zenda, ao final repete a própria vida — é sua continuação — do personagem fazendeiro Tortinho, o manda-chuva dominador. A diferença era de posse (de ter) mas os vícios eram os mesmos:

“(...) “Fui comprando uns pedaços de terra, separando meu gado, quando me dei conta, tinha mais gado que seu Tortinho.” Herculano Farias fala sobre isso tudo. Esse “tudo” que alimenta a literatura de todos os tempos. Mas não são os temas que importam. São sua transfiguração, a competência de narrá-los: é a cobiça, a posse, o dinheiro, o tempo, a morte, a degradação dos sentimentos, a incomunicabilidade humana (“Café da Manhã”, que lembra o antológico “O Almoço”, de Sagrada Família”). No tocante “A resistência”, filhos e netos querem vender a casa do velho pai (a cobiça).

Mas como bom criador que é, o autor não julga. Essa não é a sua missão. Sabiamente, não interfere na vida dos personagens. Ela corre natural, autonomamente.

Sim. É (também) uma literatura destes tempos degradados. Da prostituição dos sentimentos. Da mais-valia afetiva, da penúria existencial. Onde a busca de valores caros e nobres, no interior da hegemonia da pecúnia, é sempre destinada ao fracasso. São lugares remotos do mundo o que habita a maioria dos personagens. Num estilo tenso e rascante, ele evita a tentação do excesso, da descrição inócua e bocejante, da repetição banal.

Alguns espíritos poderão ficar assustados com a potência dos mísseis que Herculano Farias dispara, como em “Nada a Declarar”, curtíssimo, que na escassez de meios usados, absolutamente enxuto, é de uma contundência impressionante. “Livros” tem um humor cortante e ácido. O livro deixa de valer pelo que é, por sua essência inerentemente humanística, por seu valor intrínseco, mas pelo valor de troca, impera então como mercadoria.

Não quero me alongar. Mas é exatamente esse sentido do ser transformado em mercadoria — que atravessa uma literatura cortante e tensa — que nos faz refletir tão intensa e dolorosamente sobre a condição humana. Sim. A literatura de Herculano Farias é também uma crítica da vida.

Essa noção de corrosão sentimental, de alienação tem a acompanhá-lo uma extrema compaixão (não é piedade) com-paixão, no sentido dostoievskiano do termo. Compaixão por esses seres humanos mergulhados na aventura de viver. É um huma¬nismo radical. Radical no sentido de pegar as coisas pela raiz (às vezes temos que repetir o óbvio.) Insisto: é uma compaixão ontológica (o tempo, a memória, a dor, a degradação que nos é imposta por sistemas iníquos). É essa a literatura que amo, que vai ao osso humano, de absoluta tensão interna, avessa ao gosto de cortesãos ou madames ociosas.

É essa a literatura radical e dolorosamente bela de Herculano Farias, catarinense e universal.


* Romancista, contista, novelista e poeta catarinense, residente em Brasília, autor de livros como “Olhos azuis – ao sul do efêmero”, “Cerrado desterro”, “Meus mortos caminham comigo nos domingos de verão”, “Metônia” e “O homem que não amava simpósios”, entre outros

Nenhum comentário:

Postar um comentário