sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

A mãe e a manha


* Por Ângelo Monteiro


Todos se encontram, ao longo da vida, à sombra da mãe ou da manha: a mãe representando a pátria e a partilha, enquanto a manha - que ora é dengo, ora astúcia - junta com precisão as imagens do covil e da matilha. A mãe pode ser a religião, a arte e a filosofia, mas a manha não passa, via de regra, de uma ideologia marcada pela ausência de valores e posta a serviço duma economia aparentemente solidária e duma política que não distingue a malandragem do crime. Onde há mãe não costuma faltar uma visão ampliadora do tempo e da história, e onde há manha predomina, ao contrário, um horizonte uniforme e cinzento que se nega a qualquer promessa de luz.

Os inspirados pela mãe vivem em constante sintonia com o tempo, ainda quando tentam, cada um a seu modo, alterá-lo e, às vezes, dilatá-lo, os instigados apenas pela manha não se distanciam nem um pouco da água estagnada em que refletem a anônima face. Na diferença fundamental entre os inspirados e os instigados é que repousa o destino dos que escolheram a mãe ou a manha: os manhosos ou avessos à mãe, embora se sustentem das raízes e das fontes ao redor, não conseguem enxergar nada além delas, ao passo que os inspirados por sua presença não descansam nem os pés nem a cabeça na perseguição de outras raízes e fontes, já que os ventos da surpresa não deixarão de acompanhá-los.

Entre a mãe e a manha se traçam tanto os caminhos mais próximos quanto os distantes daqueles que, dispondo da própria experiência, terão forçosamente de seguir um rumo em conformidade com o que dita a voz do seu coração. Enquanto muitos fazem, de acordo com a manha, as manobras típicas do seu projeto existencial, alguns se abrigam no nicho materno de uma busca que jamais se afastará do objeto de sua escolha. Como haveremos de esquecer a preciosa sentença pronunciada por Jesus de Nazaré - "Onde está teu tesouro, aí também estará o teu coração" -, de uma vez que cada um de nós em verdade vale por aquilo que considera sua medida de amor e de conhecimento?

* Poeta, ensaísta, cronista e filósofo.


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