segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Literário: Um blog que pensa

(Espaço dedicado ao Jornalismo Literário e à Literatura)

LINHA DO TEMPO: 9 anos, dez meses e vinte e nove dias de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Por causa da peste, “nasceu” um clássico da poesia.

Coluna Em Verso e Prosa – Núbia Araujo Nonato do Amaral, poema, “Por você”.

Coluna Lira de Sete Cordas – Talis Andrade, poema, “Operação Condor”.

Coluna Pássaros da mesma gaiola – Daniel Santos, conto, “Rhesus”.

Coluna Porta Aberta – Leonardo Boff, artigo, “Dez direitos do coração”.

Coluna Porta Aberta – Boaventura de Sousa Santos, artigo, “As lutas do mundo”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer” – Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal”Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.



Por causa da peste, “nasceu” um clássico da poesia



O ilustre político brasileiro (que foi ministro e senador na época do Império), Marquês de Maricá, hoje mais conhecido pelos seus tantos aforismos, afirmou certa vez: “O império mais poderoso e fatal que existe, é o das circunstâncias”. Obviamente, concordo com essa afirmação. Volta e meia, em meus comentários e reflexões, refiro-me a essa implacável ditadora que, de uma hora para outra, geralmente sem nenhum aviso, muda toda nossa vida para melhor ou para pior. Não raro, fazemos tudo certinho. Somos estudiosos, aplicados, determinados e competentes em tudo o que fazemos, mas... um incidente casual, aparentemente banal, desses tais imprevistos, interfere e nos leva ao fracasso, sem que possamos reagir. Mas o oposto também acontece. Às vezes, somos premiados sem merecer.

Para quem não conhece o Marquês de Maricá – cujo nome de batismo era Mariano José Pereira da Fonseca – informo (ou lembro, para os que sabem quem foi) que, além de político e ministro da Fazenda de Dom Pedro II, foi, também, filósofo e escritor. Todavia, circunstâncias várias, que fugiram ao seu controle, fizeram com que nenhum de seus livros escapasse do absoluto esquecimento. Eu, por exemplo, que me confesso “rato de biblioteca”, não conheço nenhum. Ele só não foi esquecido por completo por causa de seus aforismos, repetidos geração após geração, e que assim chegaram até nós. Dessa forma o ilustre Marquês não foi de todo esquecido, embora seja lembrado não pelo que pretendia, mas pelo que foi ditado pelo acaso.

O filósofo inglês do século XIX, John Stuart Mill, do alto de sua experiência, ponderou: “Ainda que as circunstâncias influam muito sobre o nosso caráter, a vontade pode modificá-las ao nosso favor”. E pode mesmo. Para tanto, porém, não podemos nos limitar “só” a desejar. Temos, isso sim, que agir, e com sabedoria e eficácia, para que tal reversão aconteça. Contudo, esse tipo de ação não é comum. A tendência é aceitarmos o fracasso e partirmos para outra. Circunstâncias extremamente ruins, todavia, contribuíram para o surgimento de uma das obras literárias mais primorosas de todos os tempos, lídimo clássico da poesia. E, por conseqüência, perpetuou o nome e a obra do seu ilustre autor.

A circunstância negativa foi a pandemia de peste bubônica que em 1347 ceifou milhões de vidas através da Europa, levando caos e pavor a praticamente todo o continente. Em decorrência dela, porém, “nasceu” o livro “Cancioneiro”, conhecido no mundo todo pelos intelectuais que se prezam, sobretudo, pelos amantes de poesia. Quem transformou essa circunstância pavorosa em obra imortal (claro, pelo conceito humano de imortalidade), foi o poeta Francesco Petrarca. Como isso se deu? Explico. Em 1348, a cidade de Avignom, no Sul da França, que na época era a residência dos papas, foi atingida pela peste negra que devastava a Europa. Como acontecia em todos os lugares em que a doença grassava, os mortos somavam-se aos milhares. E não fazia distinção de sexo, idade, condição econômica, status social, enfim, de nada.

No exato dia 6 de abril de 1348, entre a enorme pilha de cadáveres à espera de serem sepultados com urgência, estava o corpo de Laura. E o que essa mulher tinha de tão especial? Ocorre que, apesar de ser casada, ela era a paixão secreta de Francesco Petrarca, solteirão empedernido (até em decorrência do voto de castidade que fizera), e que morava na mesma cidade. Não se sabe se era uma paixão somente platônica ou se caracterizada, também, por atração sexual. Afinal, segundo consta, Laura era mulher muito bonita e desejável. Quem já perdeu, por causa de morte, pessoa que amou, sabe o quanto isso dói.

Arrasado pela dor, Francesco Petrarca resolveu homenagear a amada da melhor maneira que podia: escrevendo-lhe poemas e mais poemas, num total de 366, que, reunidos, findaram por compor seu livro clássico, hoje presença obrigatória nas melhores bibliotecas do mundo. Claro que quando escreveu não pensava em sucesso, em glória pessoal, em nada, a não ser um desabafo. Por sua vontade, portanto, porque agiu, mesmo sem pensar em resultado, mudou, pelo menos em parte, as circunstâncias negativas, de uma perda irreparável, para outra que, sem saber (reitero), iria imortalizá-lo como grande poeta. Não a ressuscitou, claro, pois isso era, é e sempre será impossível. Todavia, perpetuou sua memória para todo o sempre. Não fosse seu livro, Laura seria logo esquecida por todos. Afinal, não era nenhuma personalidade de destaque sequer em Avignom. Era mulher comum, posto que bela, casada e cuja morte seria, certamente, lamentada pelo marido e por um ou outro parente e só. Quando estes também morressem, ninguém, em tempo e lugar algum, jamais saberia que ela sequer existiu.

Nem todos os poemas foram compostos só depois que a musa de Petrarca morreu. Tanto que seu livro é dividido em duas partes. A primeira é intitulada “Rimas em vida da senhora Laura”. Por conseqüência, a segunda leva o título de “Rima na morte da senhora Laura”. Nos primeiros poemas o autor dá a entender que sua musa sequer sabia que era tão amada por ele. Já na segunda, Laura é descrita como uma mulher mais terna, acessível e que velava por ele do céu. Francesco Petrarca foi figura tão notável e decisiva na história da Literatura, como expoente do Renascimento, que merece comentários à parte, por tantas e tantas outras coisas que fez além de seu livro famoso, o que me proponho a fazer oportunamente.

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk                  


Por você

* Por Núbia Araujo Nonato do Amaral


Por você que chorou
diante do algoz.
Por você que perdeu
o teto que o abrigava.
Por vocę que buscou
na lama um pedaço
da sua identidade.
Por você que por
tantas vezes estendeu
suas mãos, mas foi
ignorado.
Por você, o poeta
respeitosamente
descansa o lápis
e se une a você
em uma prece,
e que assim seja.

 * Poetisa, contista, cronista e colunista do Literário


Operação Condor

* Por Talis Andrade

1

Em uma ceia demoníaca
os generais do Cone Sul
aprovaram a Operação Con
dor cujas asas agourentas
selam a noite com chumbo
O conúbio dos generais
arranca do calor dos lares
artistas e intelectuais
para os interrogatórios imbecis
de cegos vampiros
as cabeças lavadas
nas apostilas da CIA
os cérebros curetados
pelas palavras-ônibus
dos pastores eletrônicos

2

Em sombrios porões
os massagistas atestam
os instrumentos de suplício
os massagistas adestram
os toques de fogo
arrancando unhas e gritos
espicaçando as últimas palavras
os nomes e codinomes
de um exército de fantasmas
um exército apenas existente
nas doentias mentes dos agentes

3

Em refrigerados gabinetes
os técnicos em interrogatórios
e informações estratégicas
trabalham noite e dia
na burocracia cívica
de selecionar os copiosos
relatórios dos espias
decifrar os depoimentos
tomados sob tortura
depoimentos escarnificados
na escuridão dos cárceres
depoimentos cantados
no limiar do medo
confissões soluçadas
nas convulsões da morte

* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).



Rhesus


* Por Daniel Santos


De vez em quando, um deles aparece. Traz sempre um sorrisinho de perversa assepsia e leva um de nós sem explicações. Leva para nunca mais! Depois, gritos ao longe. E nos entreolhamos em total desamparo.

Vem em dias incertos, passando a flanela nos óculos de lentes muito polidas, enquanto nos espia do fundo da toca de seus olhos sinistros. E escolhe o objeto de seu seqüestro, conforme fazia já com nossos avós.

Assim, há várias gerações! Embora sem respostas, sempre nos perguntamos por que nos querem e, só recentemente, entendemos que nascemos já na clausura. Fazemos parte de um plano que ignoramos!

Não, não vivemos por viver como tudo o mais. Estamos aqui disponíveis, à mercê. E não é bom. Porque quem vai com eles grita de dor, a ponto de ouvirmos daqui, na agonia de não sabermos o que sucede.

 Suplicamos socorro pelo olhar. Em vão! Muitos se beneficiam do nosso martírio, parece. Impossível, por isso, qualquer piedade. Aí, quando eles chegam, apertamos nossos filhotes contra o peito. E aguardamos.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

Dez direitos do coração


* Por Leonardo Boff


Atualmente se constata fecunda discussão filosófica sobre a necessidade do resgate da razão cordial, como limitação da excessiva racionalização da sociedade e como enriquecimento da razão instrumental-analítica, que deixada em livre curso, pode prejudicar a correta a relação para com a natureza que é de pertença e de respeito  a seus ciclos e ritmos. Elenquemos aqui alguns direitos da dimensão do coração.

1.   Proteja o coração que é o centro biológico do corpo humano. Com suas pulsações irriga com sangue todo o organismo fazendo que viva. Não sobrecarregue-o com demasiados alimentos gordurosos e bebidas alcoólicas.

2.   Cuide do coração. Ele é o nosso centro psíquico. Dele saem, como advertiu Jesus, todas as coisas boas e ruins. Comporte-se de tal maneira que ele não precise se sobressaltar face aos riscos e perigos. Mantenha-o apaziguado com uma vida serena e saudável.

3.   Vele seu coração. Ele representa a nossa dimensão do profundo. Nele se manifesta a consciência que sempre nos acompanha, aconselha, adverte e também nos pune. No coração brilha a centelha sagrada que produz em nós entusiasmo. Esse entusiasmo filologicamante significa ter um “Deus interior” que nos aquece e ilumina. O sentimento profundo do coração nos convence de que o absurdo nunca vai prevalecer sobre o sentido.

4.   Cultive a sensibilidade, própria do coração. Não permita que ela seja dominada pela razão funcional. Mas componha-se com ela. É pela sensibilidade que sentimos o pulsar do coração do outro. Por ela intuímos que também as montanhas, as florestas, os animais, o  céu estrelado e o próprio Deus têm um coração pulsante. Por fim damo-nos conta de que há um só imenso coração que late em todo o universo.

5.   Ame seu coração. Ele é a sede do amor. É o amor que produz a alegria do encontro entre as pessoas que se querem e que permite a fusão de corpos e mentes numa só e misteriosa realidade. É o amor que produz os milagres da vida pela união amorosa dos sexos e ainda a doação desinteressada, o cuidado dos mais desvalidos, as relações sociais includentes, as artes, a música e o êxtase místico que faz a pessoa amada fundir-se no Amado.

6.   Tenha um coração compadecido que sabe sair de si e se colocar no lugar do outro para com ele sofrer e carregar a cruz da vida e também juntos celebrarem a alegria.

7.   Abra o coração para a carícia essencial. Ela é suave como uma pena que vem do infinito e nos dá a percepção, pelo toque, de sermos irmãos e irmãs e de pertencermos à mesma família humana habitando a mesma Casa Comum.

8.   Disponha o coração para o cuidado que faz o outro importante para você. Ele cura as feridas passadas e impede as futuras. Quem ama cuida e quem cuida ama.

9.   Amolde  o coração para a ternura. Se quiser perpetuar o amor cerque-o de enternecimento e de gentileza.

10. Purifique  dia a dia o coração para que as sombras, o ressentimento e o espírito de vingança que também se aninham no coração, nunca se sobreponham à bem-querença, à finura e ao amor. Então ele pulsará no ritmo do universo e encontrará repouso no coração do Mistério, aquela Fonte originária de onde tudo procede e que nós chamamos simplesmente de Deus.

Tem sentido estas  cinco recomendações que reforçam o amor.

1.   Em tudo o que pensar e fizer coloque coração. A fala sem coração soa fria e institucional. Palavras ditas com coração atingem o profundo das pessoas. Estabelece-se  então  uma sintonia fina com os interlocutores ou ouvintes que facilita a compreensão e a adesão.

2.   Procure junto com o raciocínio articulado colocar emoção. Não a force porque ela deve espontaneamente revelar a profunda convicção daquilo que crê e diz. Só assim chega ao coração do outro  e se faz convincente.

3.   A inteligência intelectual fria, com a pretensão de tudo compreender e resolver, gera uma percepção racionalista e  reducionista da realidade. Mas também o excesso da razão cordial e sensível pode decair para o sentimentalismo adocicado e para proclamas populistas que afastam as pessoas. Importa sempre buscar ajusta medida entre mente e coração mas articulando os dois pólos a partir do coração.

4.   Quando tiver que falar a um auditório ou a um grupo, procure entrar em sintonia com a atmosfera ai criada. Ao falar, não fale só a partir da cabeça mas dê primazia ao coração. É ele que sente, vibra e faz vibrar. Só são eficazes as razões da inteligência intelectual quando elas vêm amalgamadas pela sensibilidade do coração.

5.   Crer não é pensar Deus. Crer é sentir Deus a partir do coração. Então nos damos conta de que sempre estamos na palma de sua mão e que uma Energia amorosa e poderosa nos ilumina e aquece e preside os caminhos da vida, da Terra e do inteiro universo.

* Leonardo Boff é teólogo e autor de “Tempo de Transcendência: o ser humano como projeto infinito”, “Cuidar da Terra-Proteger a vida” (Record, 2010) e “A oração de São Francisco”, Vozes (2009 e 2010), entre outros tantos livros de sucesso. Escreveu, com Mark Hathway, “The Tao of Liberation exploring the ecology on transformation”, “Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz” (Vozes, 2009). Foi observador na COP-16, realizada em Cancun, no México.


As lutas do mundo

* Por Boaventura de Sousa Santos


O meu trabalho profissional leva-me a viajar por vários países. As experiências que colho, não podendo confirmar ou infirmar as hipóteses de trabalho que orientam o meu trabalho científico, dão-me informações preciosas sobre o pulsar do mundo, sujeito a pressões globais, mas de modo nenhum unívoco nas repostas que lhes dá. A pretensa ausência de alternativas para problemas ou conflitos concretos num dado país não passa de um argumento útil a quem está no poder e nele se quer perpetuar.

No passado mês de Julho, pude conviver de perto com os camponeses moçambicanos em luta contra a atividade mineira e os projetos agroindustriais que os expulsam das suas terras e os realojam em condições sub-humanas, destroem a agricultura familiar que em grande medida alimenta a população, contaminam as águas dos rios, destroem os seus cemitérios, e frequentemente os submetem a repressão policial violenta. Tudo em nome do progresso e do crescimento econômico, mas de fato apenas para permitir lucros escandalosos às empresas multinacionais envolvidas (muitas delas brasileiras) e rendas parasitas às elites político-econômicas locais.

Os contatos entre camponeses moçambicanos e brasileiros foram cruciais para fortalecer a sua luta através da solidariedade internacional e alimentar a esperança de que a resistência possa ter êxito.

Há duas semanas, no Chile, vivi momentos de emoção frente ao Palácio de La Moneda onde há quarenta anos o Presidente eleito Salvador Allende foi deposto pelo golpe de Pinochet, preparado por uma forte campanha de desestabilização orquestrada por Washington, muito semelhante à que está a ser orquestrada agora contra Venezuela, facilitada por alguns erros de um chavismo que não sabe existir sem Chávez.


Em vésperas de eleições, as marcas da ditadura continuam a assombrar as elites políticas e vida social dos chilenos. A privatização da educação, da saúde e da segurança social (as mesmas políticas que hoje se implantam no nosso país) tiveram consequências devastadoras para o bem-estar da grande maioria da população, e a provável vitória de Michelle Bachelet poderá representar o esforço, ainda que limitado, para reverter a situação de desproteção social que avassala o país.

Estará Portugal condenado a repetir a história do Chile, no nosso caso, esvaziando a democracia para depois lhe tentar devolver algum significado? Para simbolizar que as continuidades sempre convivem com rupturas, no dia anterior à minha partida, mais de 50.000 chilenos e chilenas, na maioria jovens, desfilaram numa arrojada marcha de orgulho gay, como que dizendo que, tal como os estudantes revoltados de 2012 e os povos mapuches em luta contra o saque dos seus recursos naturais, são parte de um novo Chile pós-conservador e pós-neoliberal.

Escrevo esta crônica a partir da Cidade de México. Dias antes, em Guadalajara, tive um encontro com representantes do povo Wixarika em luta contra uma empresa mineira canadense autorizada pelo governo mexicano a extrair minério a céu aberto nos seus territórios sagrados de Wiricuta, São Luís de Potosi. Basta este nome para mostrar a continuidade do saque dos recursos naturais destes povos desde o início da colonização espanhola até hoje.

Tal como em Moçambique, no Chile ou no Brasil, a solidariedade internacional e o envolvimento de órgãos da ONU serão importantes para fortalecer a resistência contra estes megaprojetos feitos sem consulta às populações, com as mais graves violações dos direitos humanos e do meio-ambiente. Entretanto, o governo priista propõe uma reforma educativa com um perfil semelhante à que está a ser feita em Portugal. E, tal como cá, também os sindicatos dos professores do México protestam massivamente contra as reformas. Os sindicatos mexicanos são muito fortes e, apesar de o governo os tentar enfraquecer, adotam formas de luta que incluem ocupação de edifícios públicos e praças, bloqueamento de estradas, ou anulação das portagens nas autoestradas. Estes exemplos mostram que merece a pena continuar a lutar por um mundo mais justo e ecologicamente mais equilibrado. Os que lutam podem ter a certeza de que não estão sozinhos.


* Jornalista português 

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Literário: Um blog que pensa

(Espaço dedicado ao Jornalismo Literário e à Literatura)

LINHA DO TEMPO: 9 anos, dez meses e vinte e oito dias de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Descoberta de um mestre na arte de narrar.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica, “Permanente desafio”.

Coluna Direto do Arquivo – André Falavigna, crônica, “Meus amigos esclarecidos”.

Coluna Clássicos – Zélia Gattai, crônica, “Vinícius de Moraes”.

Coluna Porta Aberta – José Ribamar Bessa Freire, artigo, “Os índios e a queda da Bastilha”.

Coluna Porta Aberta – Gilberto Nogueira de Oliveira, poema, “A dúvida”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas” Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer”Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br



Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Descoberta de um mestre na arte de narrar

O escritor francês, Marcel Schwob, até uns quatro anos, era completo desconhecido para mim. Sequer desconfiava que existia, quanto mais que havia legado uma obra extensa e de inegável qualidade literária à posteridade. Vim a saber dele por pura obra do acaso. Foi quando adquiri, em um sebo aqui de Campinas, onde resido, por puro impulso, influenciado, talvez, pelo título, um de seus livros, porém em espanhol. Não sei se alguma editora brasileira lançou-o em português. Presumo que não. Pelo menos, por mais que pesquisasse e procurasse, não o encontrei. Nem essa obra e nem outra qualquer. O livro que me levou à “descoberta” de Schwob foi “El rey de la máscara de oro”, que ele publicou em 1898. Encantei-me com os contos nele contidos e resolvi pesquisar para saber de quem se tratava.

Localizei várias referências sobre ele, com muitos dados biográficos, em uma das tantas enciclopédias que tenho em minha biblioteca. Aliás, encontrei em mais de uma, o que mostra que ele foi importante em seu tempo, a despeito da minha abissal ignorância (pelo menos a seu respeito). Marcel Schwob nasceu na cidadezinha francesa de Chaville, em uma família judia, em 23 de agosto de 1867. Além de escritor (poeta, contista e ensaísta), foi crítico literário e tradutor. Mesmo tendo vivido pouco (morreu em Paris aos 38 anos de idade, vítima de uma reles gripe mal curada que contraiu ao retornar de Samoa, na região do Pacífico, em 26 de fevereiro de 1905), produziu muito. Escreveu, e publicou, por volta de 40 livros. Como se vê, foi um escritor incansável.

Ao iniciar as pesquisas para esta série de comentários tratando de como a Literatura lidou com epidemias como temas, lembrei que li em “El rey de la máscara de oro” um conto de Schwob que se enquadrava no tema. Corri até a estante da minha biblioteca, abri o livro e lá está sua magistral peça literária tratando especificamente do assunto. Suas histórias, em certos momentos, têm a exatidão narrativa de um repórter. Em outras, mais parecem poemas em prosa, carregados de simbolismo. O conto em que Schwob trata, especificamente, de uma epidemia, tem o título (traduzido para o português) de “A peste”. Faz uma descrição da doença tão realista e precisa, que até parece que testemunhou a devastação que ela causa. Não testemunhou. Nem poderia.

O que me dá essa certeza? Muito simples. A epidemia de que o escritor francês trata ocorreu em Florença, mais de 500 anos antes dele ter nascido. Mas não foi a pandemia, aquela que varreu praticamente toda a Europa, a de 1347. Foi outra epidemia, ocorrida na mesmíssima cidade, mas quase trinta anos depois, em 1374. O conto a que me refiro é protagonizado por dois sinistros aventureiros, que dão a entender a todos que contraíram a peste bubônica, embora não mostrassem sinais dessa contaminação. Os personagens agiram assim para não serem molestados por ninguém e assim se livrarem de uma série de situações, digamos, desagradáveis. O que me deixou atônito, na verdade boquiaberto, foi a realista e verossímil descrição que Schwob fez da doença.

À certa altura, ele escreveu o seguinte (cuja tradução, um tanto livre, é minha): “ (...) A enfermidade chegava de repente e atacava em plena rua. Os olhos ardiam e tornavam-se avermelhados. A garganta ficava rouca. A barriga inchava. Depois, a boca e a língua enchiam-se de bolhas cheias de água irritante. A vítima ficava tomada por uma sede insaciável. Uma tosse seca agitava os doentes durante horas. Depois, os membros ficavam rígidos nas articulações. A pele ficava cheia de manchas vermelhas, inchadas, que alguns chamavam de bubões. Finalmente, os mortos tinham o rosto deformado e de extrema palidez, com feridas sangrentas e a boca aberta como um chifre (...)”. Arrepiante, não é mesmo? É uma descrição de um realismo digno de um Edgar Alan Poe, tão sombrio e tétrico como os do “pai do conto de terror”.

Mais adiante, Schwob escreve: “(...) As fontes públicas, quase esgotadas pelo calor, estavam rodeadas por homens desesperados e fracos, que tentavam enfiar a cabeça na água para se refrescar. Vários deles caíam nas fontes e eram retirados delas com ganchos, negros de lodo, e com o crânio rachado. Os cadáveres, enegrecidos, jaziam no meio das ruas, nos sulcos por onde passa, quando é época de chuva, a enxurrada. O cheiro era insuportável e sufocante. O medo era terrível (...)”. Pudera! Imagine-se, paciente leitor, num ambiente como o descrito. E a descrição de Marcel Schwob coincide com as de escritores que testemunharam a peste bubônica “in loco”, como o historiador Giovanni Villani e seu ilustre xará, o magnífico autor do “Decamerão”, Giovanni Boccaccio.

O escritor francês dedicou outros contos a algumas outras epidemias, mas “La peste” é o que mais me impressionou. Raras vezes vi tamanha objetividade nas descrições e tão cru, diria chocante (ou arrepiante?) realismo. Soube, mais tarde, que Marcel Schwob influenciou escritores notáveis como André Gide, William Faulkner, Jerzy Andrzejewski e Jorge Luís Borges. O contista argentino (meu “guru” literário), aliás, confessou que um livro do seu colega francês (“Vidas imaginárias”) serviu-lhe de modelo para escrever sua “História universal da infâmia”. E eu que não conhecia essa talento, que escreveu uma peça de teatro em parceria com Júlio Verne e que tinha como modelos o medieval poeta-bandido francês, François Villon, e Robert Louis Stevenson, autor de “O médico e o monstro”!!! Conhecê-lo, sem dúvida, foi preciosíssimo acréscimo à minha (ainda) incompleta cultura literária. Um dia ainda chego lá!!!!!

Boa leitura.

O Editor.

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Permanente desafio



* Por Pedro J. Bondaczuk


O homem, desde o nascimento até a hora da morte, é confrontado, diariamente, por pequenos e grandes desafios. Recém nascido, é desafiado a fazer o reconhecimento do mundo ao seu redor e fixar no cérebro ainda "virgem", e portanto mais receptivo, os primeiros conceitos, que não entende, mas que ficarão gravados em seu subconsciente até morrer. Depois, é incitado pelo instinto a segurar a cabeça, a sentar, a engatinhar, a andar, a falar... Posteriormente, vem o delicioso período da fantasia infantil. Chega a época dos brinquedos, que nada mais são do que treinamentos para a realidade que o indivíduo terá de enfrentar no correr do resto da sua existência. Esta fase é seguida pela da educação. Primeiro, no lar, com os pais e irmãos, aprendendo, instintivamente, os conceitos de autoridade, dever, interação social, etc.

Mais tarde, é a hora da escola. Esta etapa começa com as noções elementares e termina com a formação universitária, que possibilita a escolha de uma atividade que se coadune com a personalidade de cada um de nós e com nossas aptidões (ou pelo menos deveria ser assim). E os desafios prosseguem vida afora. São individuais e também coletivos. Envolvem pessoas, famílias, comunidades, países ou gerações. É a sua capacidade de enfrentá-los que permitiu a esse animal estranho e frágil sair da caverna primitiva, rumo à conquista do espaço, para se tornar o mais forte de todos os seres viventes. Nenhum outro sequer se lhe aproximou. Esta criatura forçou a própria natureza e jamais se entregou ao seu rígido domínio. Aprendeu a andar ereto, desenvolveu habilidades manuais e expandiu o próprio cérebro. "Refez-se". Reconstruiu o projeto original.

Sua insaciável curiosidade levou-o a obrar maravilhas: desde a fabricação dos primeiros e rústicos instrumentos de pedra, aos reatores nucleares de hoje; dos rabiscos nas paredes das cavernas, às "rodovias de informação", que trazem o mundo todo a uma telinha em nossa casa com o simples comprimir de um botão; da descoberta da agricultura, às viagens espaciais. Claro que o homem não é perfeito. Longe disso. Ademais, não são todos que desenvolvem plenamente (alguns não o fazem sequer rudimentarmente) seu ilimitado potencial, suas aptidões. Há os que encaram e decidem aceitar todos os desafios que lhes são impostos. Mas também existem os que fogem deles, dos pequenos aos maiúsculos.

A ousadia humana não tem limites. Enrico Fermi, quando esteve no Brasil em 1931, previu, em palestra no Instituto Histórico de São Paulo: "Haverá um tempo, não muito longe, quando chegaremos a descobrir num cubo de metal do tamanho desta caixa (de fósforos) uma energia tal capaz do movimentar todos os navios, que sulcam todos os mares do mundo". Hoje isto já é possível, graças ao átomo. A antimatéria, que já foi obtida e "estocada" em eletroimãs, é mais fantástica ainda. Só não é utilizada porque implica em problemas que precisam ser resolvidos. Ou seja, traz embutido um desafio que deve ser encarado. Mas seu potencial energético é incomensurável. E, fatalmente, mais cedo ou mais tarde, será aproveitado para maravilhas tecnológicas muito mais espetaculares do que as que conhecemos.

Christopher G. Langhton previu, em 1991: "A tecnologia microeletrônica e a engenharia genética nos darão logo a capacidade de criar novas formas de vida ‘in silico’, bem como ‘in vitro’. Esta capacidade apresentará à humanidade desafios técnicos, teóricos e éticos de mais longo alcance com que já se defrontou". Claro que estes são apenas pequenos exemplos de caminhos já percorridos ou que estão próximos do homem percorrer. Há inúmeros reptos, aparentemente mais simples, e que no entanto quando os encaramos sentimos tentação de fugir, tão superiores são às nossas tendências naturais e à nossa vontade.

Entre estes, destacam-se os dos relacionamentos (sociais, profissionais, familiares ou amorosos), o do domínio absoluto dos nossos instintos mediante o autocontrole, o da fixação de um objetivo grandioso e permanente para nossas vidas, o da solidariedade se sobrepondo ao egoísmo e vai por aí afora. Somos desafiados a cada momento. Alguns desafios --- os que implicam em riscos para nossa integridade e que podem até resultar na nossa morte --- é mister que não sejam aceitos. Outros, porém, são essenciais de se encarar. Se fugirmos deles, nossa vida perderá o sentido e terá sido em vão.

Por exemplo, quando por uma infelicidade, por doença ou acidente, ficamos com alguma limitação física (paralisia infantil, hemiplegia, cegueira, surdez etc.) temos diante de nós dois caminhos. Um é aparentemente cômodo, mas de resultados desastrosos. O outro implica às vezes em esforço sobre-humano. Mas quando bem-sucedido, dá uma sensação deliciosa de vitória. O primeiro, é o da acomodação. Resulta sempre em dependência que é, entre outras coisas, humilhante. O segundo é o da reação, do esforço, da força de vontade, da superação, da autodisciplina, da garra. Nem sempre redunda em êxito, pois depende da limitação de cada um. Mas quando dá certo... O sentimento que o acompanha é indescritível. Para o bem ou para o mal, optei por este último... E que Deus tenha piedade de mim ! Mas só ele!

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk


Meus amigos esclarecidos



* Por André Falavigna



Eu tenho um amigo esclarecido e o nome dele não é Platero. Não é que ele é ignorante, não. É que ele é esclarecido mesmo.

Meu amigo esclarecido tem certo estilo. Não é um esclarecido vulgar, um sujeito comum. Ele tem método. Por exemplo: meu amigo acredita piamente que, durante uma discussão qualquer, o argumento que diz que “todo mundo sabe disso” é irrefutável. Em qualquer questão da vida, a medida que meu amigo esclarecido tem de razoabilidade passa sempre pela suposição de que, se todo mundo sabe de alguma coisa, não é o caso de se perder tempo discutindo essa coisa.

Ele também acredita que diversas questões são questões de gosto e que, portanto, não devem ser discutidas. Mais do que isso: todas as questões, mesmo as questões que não são questões de gosto, são sempre questões de ponto de vista e, portanto, qualquer coisa que se diga a respeito delas é sempre respeitável, porque todo mundo sabe que pontos de vista e gosto não se discutem.

Surpreendentemente, isso não o impede de discutir muito, o tempo todo, sobre quase qualquer assunto. Uma das características mais características de meu amigo é que ele tem opinião para tudo, desde a melhor dieta da moda de todos os tempos, passando pelas qualidades transcendentais de Rogério Ceni e chegando ao melhor tipo de lubrificação artificial anal disponível no mercado.

Um dos pontos em que seu ecletismo mais chama a atenção é quando ele opina sobre religião. O homem é muito bem informado, mesmo sem ter freqüentado qualquer religião, em qualquer sentido. Mesmo assim, foi por intermédio dele que eu soube que a religião é uma bobagem, mas que deve ser respeitada porque, caso contrário, corre-se o risco de se ofender muitos gostos e pontos de vista. Mas que é uma bobagem, isso lá é. Outra coisa que aprendi com meu amigo é que existe uma distinção muito clara entre fé e razão, e que devemos ter fé na idéia de que a coisa mais racional a fazer é aceitar logo isso.

Ele também é um defensor do progresso. Qualquer coisa que se relaciona com o progresso encanta meu amigo, sobretudo se a coisa for moderna. Assim como todas as pessoas esclarecidas, ele também tem consciência de que o que é moderno é eficiente e que, sendo eficiente, é bom no sentido mais amplo.

É preciso esclarecer que o apego à modernidade e à eficiência é só uma parte daquilo que compõe o esclarecimento de pessoas esclarecidas como essa de que estamos falando. Há outros componentes necessários. Um deles é a disposição de fiar-se num vocabulário que possa ser fonte única e absoluta de referências pessoais, profissionais, institucionais, sociais, científicas e até mesmo amorosas. Se esse meu amigo encontra um camarada capaz de descrever o que quer que seja em termos de igualdade e desigualdade, justiça e injustiça, solidariedade e egoísmo, social e capital, liberalismo e moralismo, Palestina e Israel, ele logo percebe que está lidando com alguém de respeito. Se essa pessoa conseguir opor dicotomicamente esses verbetes na mesma ordem axiológica que se costuma opor o bem ao mal e, além disso, é capaz de logo perceber que qualquer tentativa de inversão não passa de puro maniqueísmo, aí então esse meu amigo encontrou um irmão.

Articulações assim só são possíveis porque somente pessoas esclarecidas compreendem que é preciso lutar contra o pensamento único. Tanto é que, agora que a Guerra Fria acabou e os EUA se tornaram donos do mundo, todos sabem que não há mais divisão nenhuma no pensamento e que os EUA serão liquidados o mais brevemente possível pela diversidade do pensamento em geral. Eu fico louco tentando coerir isso tudo, mas é porque vivo nas trevas e não compreendo que a aplicação da lógica, nesses casos, não é nada mais nada menos que opressão machista do capital.

Um dia desses saí com meu amigo e com uma porção de amigos dele, e ficamos todos bêbados (esse pessoal, quando bebe, fica muitíssimo mais esclarecido). Aprendi uma série de coisas e comecei a me tornar esclarecido. Notei que preciso, de alguma maneira, montar o seguinte quebra-cabeças: o capitalismo é mau, mas não há outro jeito de viver porque não há mais comunismo no mundo. Entretanto, o socialismo é uma opção para humanizar o capitalismo. Um dos entraves a essa humanização é a religião. Felizmente, uns padres católicos já estão dando um jeito nisso, dialeticamente. A pedofilia precisa ser banida, e por isso, assim que os padres católicos dirimirem a questão da religião e o socialismo triunfar, eles devem ser todos presos. A ciência poderá esclarecer o que há de errado com esse pessoal e tudo ficará bem. O problema é que, enquanto os EUA existirem, Israel não permitirá que o mundo seja feliz, mesmo que em troca disso fuzilemos os padres que haveremos de prender, pedófilos ou não. Entenda esta última no duplo sentido mesmo. Dessa forma, devemos torcer para que a China vença as Olimpíadas que haverá na China e, assim, humilhe os EUA. Isso pode ser quase tão útil quanto uma bomba atômica nas mãos do Irã e outra nas da Coréia do Norte, o que garantiria mais equilíbrio nas relações internacionais. Não há inocentes nessa história, porque todos pagam impostos e elegeram o Bush e, assim, obrigaram Osama a fazer o que fez. Todos precisamos de um emprego decente e, se uma boa faculdade não o garantir, um concurso público o fará. Não há dúvida de que vinhos caros e charutos cubanos seriam muito mais gostosos se fossem consumidos de consciência limpa. Não há como conseguir isso sem solapar a Opus Dei. É preciso confiar na iniciativa individual, desde que não seja muito privada. Nossos ancestrais eram todos retardados que não sabiam nada de genoma ou cocaína. Se você colocar uma colher de café no bocal de uma garrafa de Coca-Cola aberta cuja tampa você perdeu, ela conservará o gás do refrigerante.

O mesmo procedimento, infelizmente, não pode ser utilizado para controlar os seus próprios gases. Se você enfiar uma dessas colherzinhas no próprio cu, os peidos continuam saindo do mesmo jeito e a colherzinha fica caindo toda hora.

Você não acredita na quantidade de coisas que pode aprender quando bebe com gente esclarecida.

(*) André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas  publicações eletrônicas.




Vinicius de Moraes

* Por Zélia Gattai


Graças a uma das visitas de Vinicius à nossa casa, salvou-se a série de canções para crianças, de sua autoria:

À beira da piscina, o inseparável copo de uísque ao lado, violão em punho, Vinicius cantava.

Faço um parênteses para me desculpar. Na afobação de querer contar logo a história que me veio à memória — como já devem ter percebido, não tenho anotações, tiro tudo da cachola à medida que as lembranças chegam — esqueci-me de pedir licença para, ainda uma vez, avançar no tempo. Peço agora, pois devo explicar como foi que as músicas infantis de Vinicius de Moraes se salvaram. Avanço tanto, tanto, que falo até de meus netos, os três que existiam na época: Mariana, Bruno e Maria João.

Nessa ocasião, o amor de Vinicius, sua mulher, era uma baiana, Gessy Gesse, a quem devemos a vinda do poeta à Bahia, onde até uma casa ele construiu, disposto a ancorar entre o mar e os coqueiros de Itapuã.

Estávamos à beira da piscina e Vinicius cantava — como foi dito — quando chegaram meus três netos.

Eu agora vou cantar umas musiquinhas para vocês, disse Vinicius às crianças, e começou: Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada… Espera aí, interrompi, vou buscar um gravador. Assim dizendo saí ligeiro. Voltei em seguida, gravadorzinho ligado e ele recomeçou: Lá vem o pato, pato aqui, pato acolá… Cantou todas as canções, intercalando entre elas uma chama, da: Esta é para Marianinha!… Esta é para Bruninho!… Esta é para Maria João!… Encantadas, as crianças ouviam as músicas pela primeira vez, pois elas ainda não haviam sido gravadas naquela ocasião. Ao saber que não restara nenhuma gravação delas após a morte de Vinicius, entreguei meu cassete à Gilda Queiroz Matoso, última e amada companheira do poeta até seus derradeiros momentos. Gravação precária, porém a única que restou e é a que se ouve até hoje.

Vinicius tornou-se íntimo de Calasans Neto e Auta Rosa, adorava o casal, alugou casa em Itapuã antes de construir a própria, queria ficar perto deles.

A rua da Amoreira, onde moravam — e moram até hoje — Calasans e Auta Rosa, era um horror: lama, buraqueira e, como se isso não bastasse, havia esgoto a céu aberto.

Freqüentador assíduo da casa, inconformado com a situação dessa rua, Vinicius não teve dúvida, redigiu uma petição em versos ao prefeito de Salvador. No poema, verdadeiro primor, pedia-lhe atenção e carinho para a rua.

Combinou com Jorge, que conseguiu a publicação do poema-petição na primeira página do jornal A Tarde.

Petição ao Prefeito

Prefeito Clériston Andrade
A quem ainda não conheço:
Quero tomar a liberdade
Que eu nem sequer sei se mereço
De vir pedir, lhe, em causa justa
Um obséquio que, sem favor
Muito honraria (e pouco custa!)
Ao Prefeito de Salvador.
Existe ali no Principado
Livre e Autônomo de Itapuã
Uma ruazinha que, sem embargo
Pertence à sua jurisdição
Uma rua não sem poesia
E cujo título é dar teto
A uma das glórias da Bahia:
O gravador Calasans Neto.
Dizer do estado dessa ruela
(Da Amoreira) eu não arrisco
Porque sem esgotos, correm nela
Rios de … — Valha-me o asterisco!
E isso é uma pena, Senhor Prefeito
Pois Calasans e sua gravura
Têm cada dia mais procura
De fato como de direito:
O que constrange os visitantes
Com boa margem de estrangeiros
A, entre gravuras fascinantes
Ver quadros nada lisonjeiros.
Calce essa rua, Senhor Alcaide
E eu lhe garanto que algum dia
Pro domo sua, esta Cidade
O há de lembrar com mais valia.
Na expectativa de que acorde
Um novo “Cumpra, se” , sem mais
Aqui se assina, muito ex-corde
O seu, Vinicius de Moraes.

Tiro e queda, a resposta do prefeito foi imediata, em pouco tempo a rua de Auta e Calá foi consertada e asfaltada e, diga-se de passagem, ela foi, por algum tempo, a única rua asfaltada das imediações.

Naqueles tempos, a decantada beleza de Itapuã se resumia no mar, nas praias, nos coqueirais e nas canções de Dorival Caymmi.

Para festejar o acontecimento, Jenner Augusto e Luísa ofereceram um almoço ao qual Vinicius compareceu vestido de gari da limpeza pública, levando para Calá e Auta a petição, enquadrada.


* Romancista e memorialista, membro da Academia Brasileira de Letras.