domingo, 25 de dezembro de 2016

Deus há de prover... Ou um natal para Maria Dulce


* Por Marco Albertim - In memoriam


Com quatorze anos Maria Dulce foi dispensada pela patroa. O marido dissera que ela tinha os cabelos bonitos. A mulher, com ciúmes, demitiu-a. O marido não intercedeu; cobiçava-a, por isso mesmo não intercedeu. Voltou para casa, ela, meia que sem entender o que acontecera.

Com quinze anos Maria Dulce reencontrou-se com o ex-patrão. Ele prometeu que ela teria dinheiro para comprar os doces que nunca comera. Descabaçou-a num quarto de hotel. Maria Dulce gemeu, para depois fartar-se com goiabada. Comeu tanto que se desarranjou nos intestinos.

A mãe a pariu com vinte e oito anos de vida, depois de uma trombose que a deixara com um lado paralisado. Ouviu calada a confissão da filha. Fora xangozeira, e aconselhou-a a fazer lavagem na vagina uma vez por semana, para evitar doenças do mundo. Nas segundas-feiras, Maria Dulce fazia cozimento de barbatimão, caju-roxo e casca de romã. Lavava as entranhas três vezes no dia. Com exceção do barbatimão, bebia a mistura das outras drogas.

Quando o ex-patrão não a quis mais por fastio, ela sentiu falta do dinheiro sem ter experimentado nenhum afeto pelo carinho que recebera. Tratou a mãe com desvelo religioso, depois que a ouviu dizer que tomara um purgante para tratar de uma virose. Devia ficar deitada para evitar friagem. Mas levantou-se para beber água no corredor escuro da casa. Quando abriu a jarra para tirar a água com o caneco, abaixou-se. O rosto cobriu-se de uma lufada fria vinda da água quase gelada.  Sentiu, ela, dormência no lado esquerdo, depois uma descarga de irradiações. Deitaram-na na cama. Quando voltou a si, tinha o braço e a perna pecos. O marido engravidou-a, depois do parto saiu de casa e não voltou. A mulher aposentou-se por invalidez. Uma merreca que Maria Dulce, depois dos dezoito anos, recebia com a procuração que a mãe lhe passara.

A mãe confessou com tristeza, com o ricto de uma lembrança viva... E não censurara o ofício de prostituta. A filha tratou-a nas doenças e deu-lhe de comer na boca. Jurou à mãe que no próximo natal...
- Vou comprar bacalhau e convidar os vizinhos. A festa vai ser para mostrar que aqui em casa não tem só tristeza, não. Aqui também se comemora a vida! Confia em mim, mãe?
- Confio, minha filha.

O cabaré, na margem do rio Goyaninha, ficava na parte mais baixa da cidade. Quando alguém não estava lá, estava em cima; quando estava, estava em baixo. Com dezoito anos, quadris largos, Maria Dulce desceu. Foi acolhida por Joaquina, uma cafetina envelhecida no ofício. Queria que ela se mudasse de mala cheia para o bordel. Ela não aceitou para não deixar de cuidar da mãe.
- As lavagens, Dulcinha. Não deixe de fazer as lavagens.
- Esqueço, não, mãe. Um dia da semana eu não tenho contato com homem só pra cuidar de mim.
- Vai com Deus.

No primeiro ano, foi a mais requestada da pensão de Joaquina. As outras sentiram inveja, ela se recusou a se deitar com homem que não fosse o seu, mesmo sendo chamada. 

Não houve a festa de natal porque o dinheiro que sobrara, juntando com a aposentadoria da mãe, fora usado na compra de remédios para a velha acamada. Montou uma árvore pequena, luzidia, e acendeu no corredor, em frente ao quarto da mãe. A árvore ficou junto à jarra d’água, picando luzes no barro escuro do pote.

O cabaré se esvaziou. Algumas putas, sem parentes, foram dormir mais cedo. Joaquina subiu para a casa da filha que crescera longe do bordel. Maria Dulce passou a noite com a mãe, servindo-a com fatias de bolo de trigo.

No ano seguinte, encheu-se de esperanças com os filhos dos donos de engenhos de rapadura. Os rapazes traziam-lhe roupas, perfumes, colares ordinários e dinheiro. Com o guarda-roupa cheio, deu roupas e jóias falsas a putas mais pobres. Joaquina a encorajava. Os homens queriam recamá-la, guardava as bijuterias na gaveta da penteadeira. Com poucas palavras, o corpo ornado por um cetim, atendeu em domicílios.

Mais um natal, e convenceu-se de que faria a festa para a mãe.

Não contraiu sífilis nem gonorréia, e acamou-se por causa de uma virose. A mesma virose que fora o estopim da invalidez de sua mãe. Uma semana com 38 graus de febre. Outro natal sem festa, para dar cobro à demanda de remédios. Á árvore não foi montada porque a única irmã que tinha era desastrada no trato com utensílios. Joaquina, preocupada, visitava a doente. Preparou a infusão para Maria Dulce lavar as entranhas.
- Já estou velha e quero descansar – confessou. – Quero que você assuma o meu lugar. Você não é gastadeira como as outras. Você fica de frente com o negócio, e eu divido o lucro com você.
- As outras vão se sentir desprezadas.
- Vai ser só no começo. Depois se acostumam. O cabaré não pode parar. Elas sabem disso.
- Sou muito nova, dona Joaquina. Ninguém vai confiar em mim.
- Quando eu comecei, era mais nova do que você, e ninguém acreditava em mim. Com a sua idade e a beleza que eu tinha, atraí muita gente para o cabaré. Com você vai ser a mesma coisa. Levante dessa cama para ser dona do cabaré.

Não queria ser cafetina, mas viu no convite a chance de fazer o festim de natal. Joaquina nunca lhe exigira que fizesse os homens fazer fila na porta de seu catre. No salão, Maria Dulce ocupava uma mesa em companhia de um só homem. Ele pedia a bebida para impressioná-la. Os outros, em outras mesas, se juntavam com outras mulheres. Apreciavam-na a distância.

O escorbuto matou Joaquina no mês de dezembro. O propósito de repassar o mando do bordel para Maria Dulce, jazeu no cemitério. O proprietário da casa não confiou na pouca experiência da sucessora, e não renovou o contrato de aluguel. As putas arribaram. Ela contou o que juntara, comprou outra árvore de natal e pôs junto ao pote no corredor. Não houve festa.
- Deus há de prover, minha filha... – A velha, no leito, não se animava.

Maria Dulce foi aconselhada por um de seus clientes, a não freqüentar  bordéis. Receberia homens em casa, quatro ou cinco seus apreciadores. Ele próprio seria um deles. A cada mês, ela deitou-se com quatro homens, um por semana. Comerciantes que não regateavam o valor do michê.

Dois anos com os quatro, e não cumpriu o propósito de um natal festivo.
- Deus há de prover, minha filha...

Na páscoa, resolveu se comungar. No confessionário, disse que não era casada e se deitava com diferentes homens. O padre receitou-lhe vinte padre-nossos. Rezou com fé, Maria Dulce, saltando as palavras. Engoliu a hóstia sem jeito de beata. O padre que a comungou, o mesmo que ouvira a confissão, evitou olhar no rosto dela. As beatas não quiseram se ajoelhar perto.

Os quatro homens sumiram ao fim dos dois anos. Ela voltou para o cabaré, em Condado, uma cidade vizinha. A dona logo se engraçou de seu jeito desinteresseiro.
- Dulce, você não nasceu para ser puta. Não sabe explorar os clientes, ganhar um michê alto. Escute o que vou lhe dizer: as mulheres são ignorantes, otárias. Faça economia e vá para Recife comprar tecidos ou roupas para mulheres. Mas só compre se houver queima de preços. Depois revenda aqui. O puteiro todo vai querer roupa vinda do Recife.

Ela entranhou-se em lojas de tecidos, tirando proveito de promoções de só duas horas, para escoar o estoque. Comprou panos, roupas prontas e revendeu. Mascateou durante dois anos. Não se alugou para ninguém, e não se descuidou nas lavagens...

Nunca fora examinada. Foi ao médico e submeteu-se a testes. O médico surpreendeu-se.
- Sua vagina está limpa. O útero também.

Não nascera para ter doenças no sexo. Sentiu-se apta a continuar no ofício.

Os moços que freqüentaram o puteiro se entretinham com moças de famílias, alunas de colégios de freiras. O puteiro faliu.

Maria Dulce voltou para casa. Nos fundos, juntou mesas e cadeiras, cobriu com toalhas que comprara nos queimas. Montou um bar. Os fregueses compareciam para apreciar o seu decote. Não eram os moços, só velhos debochados. Ela não se deitou com nenhum, nem com a promessa de que lhe dariam um natal com peru gordo.

Em 25 de dezembro, montou uma árvore grande numa das mesas do bar. Na véspera, procurou bacalhau no mercado para sortir as panelas. Não conseguiu comprar. Com o preço alto, comprou uma ave para abater. Passou o natal comendo a galinha do costume, agora temperada com folha de erva-doce. A mãe não se animou a sair da cama, perdera a vontade. Maria Dulce tinha vinte e sete anos. A depressão ocupou-se de seu juízo.

No ano seguinte, reencontrou-se com o homem que a descabaçara. Sentiu enjôo no estômago, lembrando-se da porção de goiabada que comera. Era dono de uma hospedaria com doze quartos. Tinha sessenta anos e se entediara com o casamento, com a esposa. Viu em Maria Dulce a chance de recuperar o viço dos anos.
- Você vai ficar só comigo. Pode fechar o seu bar. Não vai mais ouvir chateação de bêbados. Eu lhe dou a feira toda semana. É uma promessa.
- Não quero me amigar com ninguém.
- Não vai morar comigo. A gente fica se encontrando na hospedaria. Uma vez por semana.

Os dois se trancavam num dos quartos. Ficavam até o amanhecer. O homem, provendo-se da energia dela, não poupou gastos. No final do ano, propôs que escolhesse o dinheiro para um natal farto de bacalhau... ou a compra da casa onde ela morava.

Viu-se proprietária da casa. Ouviu com prazer músicas natalinas, voltou a cozinhar galinha. A velha, na cama, não se animou para apreciar as luzes da árvore, agora na sala da casa.

O amante a chamara para o quarto da hospedaria. Com arranjos, árvore, champanha e bacalhau. Preferiu, ela, ficar com a mãe e a irmã. 

Na noite de Reis, Maria Dulce saiu com a irmã para visitar os presépios. Saiu com a recomendação da mãe, de que trouxesse a descrição precisa de cada lapinha. Na rua do Curtume, um reisado se anunciava ruidoso; era um reisado pobre, e as roupas conferiam pompa aos atores. O rei, com o culote até os joelhos, foi atraído pelo cetim lustroso do vestido da moça recém-chegada. O negro a conhecera no cabaré de Joaquina. Não a chamara para o quarto porque ela estava em companhia de moço endinheirado. Agora, com franjas no culote, blusa comprida de cetim, coroa e cetro, quis homenageá-la. Entregou-lhe o cetro. Puxou-a para o meio. Ela riu, desinteressada, grata. O Mateus fez um volteio entre os dois.

O cetim de Maria Dulce combinou com a função. Juntaram-se na homenagem o mestre, o contramestre, o Mateus e a Catarina. Os meninos, segurando candeias de querosene, fizeram a reverência. O mestre, com um apito, ordenou que seguissem para a visitação aos presépios.

Entraram em casas, recolheram dinheiro. A última com Maria Dulce segurando o cetro, foi na rua da Baixinha. O mestre apitou. O brilho convidou-os. Na sala, o rei e o cortejo atiraram os lenços nos ombros dos donos. O dinheiro veio dentro.

O amante de Maria Dulce surgiu do corredor. Atrás dele, a esposa, uma velha de muitos partos. Reconheceu Maria Dulce; não estava em sua casa, fora convidada para as cerimônias de Reis. Sentiu-se mal. Soprou no ouvido da dona da casa, a inconveniência de acolher gente de má conduta. O mestre, avisado pelo dono da casa, retirou-se com o cortejo.

O rei deu-se conta do desarranjo de Maria Dulce. Ordenou que dessem início à dança da Alma, do Diabo e de Miguel. Fez-se a roda. O povo em redor. Maria Dulce foi coberta por um lençol branco, deram-lhe um rosário, instruíram-na a gemer. Seria ela a Alma. O Diabo, de vermelho, com rabo e garras afiadas, persegue-a, puxa-a pelo braço. Queria-a refém, levá-la às profundas.

Da janela da casa, a mulher do amante de Maria Dulce assistia, aprovando a escolha da meretriz como alma a pagar uma pena.

São Miguel, com asas brancas e uma espada na mão, interpõe-se. Trava-se a luta entre ele e o Diabo. O Diabo é vencido. Há um estouro de pólvora no meio da rua. O Diabo some de cena. Há alívio entre o povo.

A esposa do amante de Maria Dulce some no corredor da casa.

Maria Dulce devolve a roupa à moça que faria a função, e agradece.

Em casa, contou à mãe sobre o brilho de cada presépio. Fez do auto do reisado um conto de desfeita. A velha conhecia o negro de outras aparições como rei. Elogiou-o. Disse que a ele fora reservada a função de livrar a filha da injúria, quando tinha só quatorze anos.

Maria Dulce e a irmã comeram goiabada antes de se deitarem, comeram sem medir numa das mesas nos fundos da casa.
- E agora, Dulce, o que você vai dizer ao homem? – a irmã, que nunca fora cozida por homens, quis saber.
- Nada. Ele viu tudo!
- Mas você entrou na casa da amiga da mulher dele...
- Entrei como rainha, tinha todo o direito.
- E não foi para o inferno...
- Ninguém pode me mandar para o inferno – misto de siso e vingança no juízo. – Porque todos nós já estamos no inferno. Até a velha que queria me ver queimada na rua...

Na hospedaria...

Com o amante na cama, convenceu-o de que tinha a porção divinatória para dar-lhe o viço de macho. Sentira fastio, ele, e agora nojo pela mulher que parira seus filhos. Provera Maria Dulce de doces, mas se deixara subjugar pela mulher. Agora tinha a desforra na cama.
- Eu lhe dou todo o doce do mundo – rendeu-se.
- Eu só queria doce quando me fazia mal nos intestinos – confessou ela.
- Vou lhe dar uma fábrica de doces para você não esquecer que foi com uma barra de doce que começou sua vida.
- Não precisa. Uma fábrica de doces não vai adoçar minha vida.

Com trinta anos não aprendera a ter ambição.

Com trinta e três anos, já tendo comido bacalhau nos dois últimos natais, sentiu-se meio amputada quando Fabrício, o amante, prostrou-se no chão depois de coitá-la. O homem suara. Não teve tempo de gritar o gozo, caiu fora da cama. Ela chamou-o por três vezes, segurou-o no pulso. Tinha o corpo quente, ele, e os olhos revirados.

Ela chamou o porteiro, homem da confiança de Fabrício. Contou tudo, sem esconder as minúcias da peleja pelo gozo.

Veio a ambulância.

O velório, o enterro.

A viúva, com os filhos, os amigos, rezou e chorou pela alma do homem que a tivera por conveniência.

Vestira uma roupa discreta, da cor cinza, Maria Dulce. Sozinha, foi ao cemitério. Ficou por trás de uma laje, esperou o cortejo sair. A irmã não tivera coragem de ir com ela. Acercou-se da sepultara recém-fechada, e deitou um ramo de flores. Quis rezar, mas a viúva rezara uma oração postiça, doente. Teve medo de imitá-la.

Em casa, juntou o barbatimão, o caju-roxo...


* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.





Um comentário: