sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Trilha sonora



O poeta português, Fernando Pessoa, em famoso ensaio sobre arte, encontrado no tão falado baú de seus textos inéditos, aberto, e fartamente explorado após sua morte, escreveu: “Para os sentimentos vagos, que não comportam definição, existe uma arte – a música –, cujo fim é sugerir sem determinar. Para os sentimentos perfeitamente definidos, de tal modo que é difícil a emoção neles, existe a prosa”. E não estava errado, com certeza.

Todos nós temos, em maior ou menor grau, determinadas canções que nos evocam, sempre que executadas, momentos marcantes, bons ou maus, da vida. Elas formam, em conjunto, uma espécie de “trilha sonora” desses acontecimentos, como nos filmes, com a diferença de que não se trata de ficção, mas da realidade nua e crua, mesmo que a fantasiemos, na medida do nosso temperamento e da nossa personalidade. 

Mais adiante, Fernando Pessoa acrescentou a propósito: “Só a música e a literatura permanecem”. Optei pela segunda, por não ter o mínimo talento para ser músico. Nem para compositor e muito menos para intérprete. Tocar, não toco nenhum instrumento, nem os de percussão. Cantar? Valha-me Deus! Haja ouvido e paciência para os que tiverem a desdita de me ouvir!

Mas, como todo mundo, também tenho a minha “trilha sonora”. Ela variou, destaque-se, ao longo do tempo, ao sabor da apuração do meu gosto estético e do acréscimo de cultura que a leitura me proporcionou. A primeira música que evoco, sempre com enorme saudade (e cujo título e autor desconheço), por exemplo, marcou o momento em que deixei, para sempre, a minha terra natal, o Rio Grande do Sul. Vim para a Eldorado de todos os brasileiros, São Paulo, em busca de oportunidades que ali (pelo menos era o que meus pais pensavam), jamais teria. Eu contava, na ocasião, com cinco anos de idade, na véspera de completar seis.

Cantarolo, neste momento, um trecho dessa canção (desafinado, como sempre, mas com o consolo de saber, como disse um dia João Gilberto, que “no Brasil até os canarinhos desafinam”), que não me saía do ouvido desde o embarque, na segunda classe de um trem, na estação de Santa Rosa, até quase a hora do desembarque na Estação da Luz:

“Peguei o Ita no Norte
pra vir pro Rio morar,
adeus meu pai, minha mãe,
adeus Belém do Pará...”

Como se vê, pelo menos no que diz respeito à letra, a tradicional cançoneta popular nada tinha a ver com a situação que eu vivia naquele momento. Minha viagem, por exemplo, não era de navio. E muito menos era no da famosa linha que fazia o trajeto da Amazônia à então Capital Federal, duas vezes por semana, naqueles idos de 1948. Não estava me despedindo de Belém e nem ia para o Rio morar. Por que, então, foi essa, e não outra canção qualquer que marcou aquele momento? Não me perguntem! Jamais saberei responder. Mas foi ela. 

Claro que a minha “trilha sonora” não se restringe apenas a essa música. Tem, na verdade, talvez mais de uma centena de outras, praticamente à razão de duas ou mais por ano da minha vida.  E nem são somente músicas populares. Composições de Chopin, de Wagner, de Bach, de Liszt, de Rachmaninoff, de Brahms, de Mozart, de Tchaikowski, de Jacques Offenbach (principalmente a “Barcarola”, da série “Les contes d”Hoffmann”) e, em especial de Beethoven, ilustram minhas mais preciosas lembranças, evocadas com incontida emoção (evocação que não raro me leva às lágrimas), sempre que as ouço.

Na adolescência, por exemplo, sucessos dos chamados “anos dourados”, como “Jambalaya”, com Brenda Lee; “Love letters in the sand” e “Only you”, com os The Platers; “Minha namorada”, com Carlos Lyra, “Noite do meu bem”, de Dolores Duran, com Maysa Matarazzo e “Hino ao amor”, tanto com a Edith Piaff, no original em francês, como na versão que vendeu toneladas de discos, na voz de Wilma Bentivegna, entre outras, marcaram instantes memoráveis. E estes variaram demais em sua natureza.

Foram conquistas de novas namoradas, por exemplo. Também foram azedas e traumáticas rupturas de namoros. Houve reencontros com parentes ou amigos. E foram outros tantos e tantos e tantos episódios, aparentemente banais, mas para mim maiúsculos e dignos de recordação, de uma existência sofrida, batalhada, não raro dramática que, todavia, no cômputo dos prós e dos contras, tem sido, na verdade, feliz...

O poeta Mário Quintana, cuja poesia, sem perder a profundidade e a emoção, tem como principal característica uma fina e inteligente ironia e um enorme senso de humor, também escreveu a respeito. Foi este poema minimalista, intitulado “Meu Trecho Predileto”, e que diz:

“O que mais me comove, em música,
são essas notas soltas
--- pobres notas únicas –
que do teclado arranca/o afinador de pianos...”.

E você, caro leitor, qual é a sua trilha sonora? Qual a música que lhe evoca os momentos mais marcantes da vida? Um samba? Um clássico? Um forró? Um rock? Composições em estilo brega, com Waldick Soriano, Odair José ou Lindomar Castilho? Ou são as notas, soltas e únicas, do afinador de pianos?

Boa leitura!

O Editor.

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