quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Estranhos encontros na Lapa



A Lapa, entre os bairros cariocas, é um dos que mais me fascinam, por duas de suas características. A primeira – seu cartão postal – é a linha de bonde que passa em cima dos seus famosos arcos. A segunda, a boêmia que a caracteriza e lhe dá um estranho encanto, um toque de decadente nostalgia. É como se em cada esquina houvesse um poeta. Como se em cada casa, ou bar, ou rua, existisse um poema palpitando, à espera de ser apropriado e vestido com palavras. Não sei se passadas três décadas (a última vez que estive no bairro foi em 1961), o lugar continua do mesmo jeito. Acredito que sim, pois nesta fase em que a violência domina boa parte da sempre maravilhosa cidade do Rio de Janeiro, nunca li, ou soube por qualquer outro meio, de algum episódio violento, (como tiroteio ou seqüestro), envolvendo esse bairro, que tem cadeira cativa nas minhas lembranças de moço.

Na Lapa, conheci, além de prostitutas, de gigolôs e de "malandros-bambas", ou seja, dos seus estereótipos, poetas do mais puro estofo, que nunca publicaram livros, que não constam de antologias, que não disputam concursos e nem ganham prêmios e que sequer admitem que o sejam, mas que são os guardiões da autêntica poesia urbana carioca. Entre dois tragos, bebericados lentamente em alguns de seus bares, banhei inúmeras vezes, minha alma de lirismo. Descobri pérolas de emoção declamadas por seus autores, engrolando a língua por causa dos efeitos dos vapores etílicos. Percebi quanta beleza existe naquilo que é aparentemente feio, vicioso, decadente e marginal. Mas é autêntico. É poesia pura e da melhor qualidade.

Aliás, sobre o bairro, Manuel Bandeira tem versos definitivos, dos tempos em que morou ali. De tão conhecidos, creio ser desnecessário citá-los. Mas pesquisando a obra de Carlos Drummond de Andrade, descobri um seu poema sobre a Lapa, que não conhecia e que me apressei a anotar. Afinal, é uma raridade. Só não sei o título que ele lhe deu. Mas é o que menos importa. O poeta itabirense (ou seria itabirano?), escreve:

"Villon, Verlaine e Luís encontraram-se na Lapa.
A vida – essa meretriz – tanto beija como escapa.
Villon, Verlaine e Luís trautearam suas canções
com riso, lágrima e uísque,
e entre tantas emoções
deixaram na noite escura
--- Villon, Verlaine e Luís –
a luz mais terna, mais pura".

Lindo, não é verdade?!

Consegui identificar nesse poema que, parodiando Mário Quintana, "invejo por não ser seu autor", dois dos personagens desse impossível encontro, envolvendo pessoas de épocas muito diferentes, separadas por séculos entre si. Villon é o poeta vagabundo francês, François Villon (1431-1463), pseudônimo de François Montcorbier des Loges. Era um rebelde, além de irrecuperável boêmio, que desafiava o rígido sistema vigente em sua época, o que era extremamente perigoso e significava ou o calabouço ou o patíbulo. É uma das figuras mais fascinantes da história da literatura mundial, tanto pelos seus versos, quanto e principalmente pelo seu estilo de vida.

Verlaine é evidente. Trata-se do também francês Paul Verlaine, simbolista do século XIX, um dos "cinq poetes maudites". Há pouco mais de 70 anos, um dos seus versos serviu de senha para o "Dia D", a invasão da Normandia por parte das tropas aliadas durante a Segunda Guerra Mundial. Seus poemas e sua vida sempre estiveram ligados à boêmia. Daí fazer sentido ser incluído no insólito encontro no bairro carioca. Só não consegui identificar a qual "Luís" Drummond se referiu. Por mais que raciocine, consulte colegas, busque referências na obra drummondiana, permanece a incógnita. Mesmo levando em conta que houve poucos Luíses poetas na literatura brasileira. Deve ser alguém do século XX. E a citação, obviamente, não se reporta ao imortal Camões. Presumo que se trate de algum boêmio da Lapa, dos que confessei acima terem me hipnotizando com sua estampa e suas estrofes.

Essas figuras anônimas (e folclóricas), embora continuem em seu anonimato, o que é muito estranho pela impressão que causam, marcam seus perfis, seus contornos, o desenho de seus rostos em "ferro e brasa" em nossa memória, para nunca mais se apagarem. Permanecem como indeléveis tatuagens. De mansinho, como que não queiram nada, nos invadem e tomam conta das nossas emoções, que ficam à flor da pele (com a ajudazinha do álcool, é verdade). Costumam, como diz o excelente poeta e saudoso amigo Mauro Sampaio, no poema "Surdina",  "invadir a alma de mansinho/e não assustar as estrelas/que iluminam a saudade".

Boa leitura!

O Editor.


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Um comentário:

  1. Como você imagina que a Lapa seja a mesma, eu a imagino outro universo se comparada ao que você viveu lá. São 55 anos de mudanças, mas o resgate feito ficou belo.

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