sábado, 19 de novembro de 2016

A imortalidade 


* Por Ivan Junqueira


O que é a imortalidade?
Um sopro que nos carrega
para os confins da orfandade,

onde o espírito se nega
e de si já não recorda
após a última entrega?

Que luz é a que nos acorda
quando a morte, em dada hora,
bate à porta e chega à borda

do ser que se vai embora,
mas crê que não vai de todo,
pois do invólucro que fora

algo fica em meio ao lodo
que lhe veste o corpo morto
com a púrpura do engodo?

E o que cabe ao que foi torto
e nunca exigiu conserto?
Irá chegar a algum porto?

Será que na alma um aperto
não lhe purgou a maldade
quando do fim se viu perto?

O que é a imortalidade?
Uma insígnia, uma medalha
com que se louva a vaidade?

Ou não será a mortalha
que te poupa só a cara
escanhoada a navalha?

Será talvez a mais rara
das obras que publicaste
ou da crítica a mais cara?

Será isto, já pensaste,
a herança em que se resume
o que aos amigos deixaste?

Esquece. Sente o perfume
de algo que se fez distante:
a mão de uma criança, o gume

de seu olhar penetrante
quando viu, no ermo do cais,
que o tempo que segue adiante

é o mesmo que volta atrás
e confunde a realidade,
e a desmantela, e a refaz.

É isto a imortalidade:
esse eterno e estranho rio
que corre em ti e te invade.

E o mais é só o pavio
de um lívido círio que arde
no insuportável vazio

que enche toda a tua tarde.


* Jornalista, poeta e crítico literário, membro da Academia Brasileira de Letras.

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