segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Junto ao arco da estrada

* Por Rubem Costa


Numa visão introspectiva do ser humano, Xavier de Maistre, escritor francês do século 18, escreveu um romance célebre, Viagem em Redor de Meu Quarto, que serviu de espelho até na elaboração de Memórias Póstumas de Brás Cubas, como o próprio Machado de Assis confessa no prólogo do livro. É uma revelação do ser que se desnuda ante os seus próprios surpreendidos olhos. Nesse rastro, quando já me beiram os noventa anos, vejo-me também na contingência de olhar para dentro de mim mesmo, na tentativa de espanar a mente da inércia reflexiva e lubrificar as articulações enferrujadas que emperram o caminhar de um corpo vivo. Claro e indeclinável é que, no proceder, defronto-me com a certeza inafastável de que no desenrolar da existência se impõe a trilogia fatal do tempo:

Em criança olhou a vida,
viu a vida embevecida.
Era a luz que emergia,
era a manhã que surgia.

Quando jovem, olhou a vida,
Viu a vida apetecida.
Era a luz que resplendia.
Era o sol do meio dia.

Na velhice, olhou a vida,
viu a vida esmaecida.
Era a luz em agonia,
Era a noite que descia.

Entanto, no desenrolar das estações, a caminho do inverno, nada impede, ao homem que se debruce no alpendre, quando ao cair da tarde, o sabiá vem trinar no alvoredo. Booker Washington, poeta negro dos Estados Unidos, num entardecer de dia chuvoso, escreveu um poema à vida, dizendo: — “Ontem é o nome de um sol posto, temos o amanhã diante de nós, Junto dos arcos da estrada, chegamos. Marchemos!”

Esquecida da rapidez das horas que passam, a ironia do jovem é flagrante contra a existência que passa. Não percebe que o pôr-do-sol é apenas o dia que envelheceu, mas conserva dentro da tarde os salpicos de luz da manhã... Fala-me à piedade a voz do moço, quando dela parte a chacota de que o problema de velho é apenas uma questão de junta. Junta tudo e joga na cova — “Osso e ovo”. Ouço a brincadeira cruel e escuto a lição de Xavier de Maistre. Olho para dentro de mim mesmo e descubro o tempo guardado que fala do sol de um mundo que já não é. Penso então em Booker Washington e me convenço que a transitoriedade do dia é a grandeza do amanhã: nada de chorar na prece do ângelus, nem de andar por aí agarrado na bengala da lamentação, arrastando o casco na calçada e mijando no pé.

Sueli, a síndica do condomínio onde moro, aqui no Cambuí, descorçoada com a trabalheira que dá o conserto e a pintura dos prédios, num desabafo, disse outro dia que reformar coisa velha é uma porcaria. De princípio protestei mas, logo em seguida, concordei amplamente. O homem, enquanto desliza no tempo, não deve mesmo pensar em se reformar. Reforma é mudança, substituição, troca do que já não serve pelo novo que nem sempre se conhece. Na linguagem militar, reforma é sinônimo de aposentadoria. Descanso para a farda. General reformado passa a usar pijama, roupa incômoda de dolce far niente para quem a vida passou dando ordens: “ordinário, marche!”

Vai para as traças. Perde o encanto dos sonhos. Por certo morrerá de tédio, se não tiver a disposição e vitalidade do General Seixas que, usando de suas altas virtudes e capacidade de comando, aceitou assumir, para gáudio nosso, a Secretaria de Segurança da municipalidade. É isso. A gente não deve pensar em reformar-se, mas em conservar-se. Manter-se vivo no tempo em que está imerso. Pois é exatamente o que ando fazendo agora: quando procuro, dentro do possível, agarrar os meus neurônios que tentam escapulir enquanto lubrifico as articulações das pernas e dos braços que começam a enferrujar. Iniciei o tratamento com hidroginástica, que abandonei, porque não gosto de piscina, onde a sujeira coletiva se mistura. Troquei pela sala de ginástica de solo que a Associação dos Funcionários Públicos mantém em Campinas. A AFPESP é a maior entidade de classe da América do Sul. Com 232 mil associados, tem 12 Unidades Recreativas e Lazer e 13 delegacias de atendimento de pessoas distribuídas pelo Estado. A de Campinas serve de modelo. A sala de musculação é freqüentada, na maioria, por antigos funcionários que já deixaram o serviço público, há muitos anos. Velhinhos sem bengala. Geralmente professoras, criaturas que deram o melhor de si em favor da infância e da juventude.

É aí que começa a ironia. Na sala de musculação, os alunos são encanecidos docentes de ontem, ao passo que o mestre, Guilherme Pinheiro da Silva, aquele que ensina a técnica da desferrugem, é quase um garoto. Todavia, competente e entusiasta. Descubro-o diligente a orientar pacientemente os que passaram a vida ensinando o bê-á-bá para gerações. Vendo-o na tarefa árdua, lembrei-me de uns versos antigos que me falam à existência atual:

“Ontem, atravessando as ruas
o pai levava pelas mãos o filho
ensinando caminhos novos
na paisagem antiga.
Hoje, o moço leva pelas mãos o pai
para que não tropece em seus próprios passos
olhando na paisagem nova
o caminho antigo”.

O moço conhece muito bem o seu ofício. Sabe conduzir as coisas. Com carinho e afeto, leva os que já não mais são jovens a sorrir ante a paisagem nova. Compreende, acessível, que a academia de ginástica não é um refúgio de vencidos, mas um oásis, sopro de vida para criaturas que, como o poeta, ainda podem dizer: “Junto do arco da estrada chegamos. Marchemos!” Marchemos, sob a luz do dia que ainda brilha; marchemos mesmo que seja por um só minuto. Um só instante apenas, a caminho da eternidade!


* Escritor e membro da Academia Campinense de Letras. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário