quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Para levantar a caboclada


* Por Mara Narciso



O verbo “montesclareou” transformou as Festas de Agosto de Montes Claros. A cultura está a cada dia mais viva. Sem datas precisas, as manifestações culturais espontâneas, populares e religiosas não têm documento de fundação, assim como as palavras criadas podem não ter suas paternidades comprovadas. Houve um período em que as festas minguaram, mas ressurgiram e agora acontece o apogeu. Agarrados aos céus, os dançantes remanescentes superaram adversidades, não rejeitaram apoios, nem acréscimos, nem aculturamentos, também não se incomodaram com os teóricos, que, tomando atitudes opostas, explicam aos participantes quem são eles e como devem agir.

Nas manifestações dos caboclinhos, marujos e catopês, Maria do Socorro Pereira Domingos, de 38 anos é assediada e fotografada, porque é Chefe do Primeiro Terno de Caboclinhos do Divino Espírito Santo. Está no comando da caboclada, de viola em punho, subindo e descendo as ruas nos dias de festa desde a morte do pai, Joaquim Poló, há oito anos. Já participou dos festejos por diversas vezes grávida, mas agora é diferente, pois está em gestação adiantada de gêmeas. Saiu vestida de vermelho, a cor do terno, com um cocar vermelho, camiseta e uma ampla saia rodada, tocando e cantando, mas, por ordens médicas, não dançou. Vai completar oito filhos e segura um menino pequeno pela mão. Não liga para as câmeras, e, completamente à vontade, mas com poucos sorrisos, atende a todos. Devido ao seu estado interessante, procura sentar-se à sombra, tomar água, mas não para de orientar seus comandados. Seu marido, por timidez, não gosta de ser fotografado.

Quando o desfile começa, a cacicona Socorro sai à frente de uma das filas e a sua filha Suziane Pereira Domingos, de 18 anos, puxa o cordão do outro lado. Como a mãe, a moça toca viola, e sai no terno desde um ano de idade. Seguindo a tradição, também com o título de cacicona, tem poder no grupo, ensina e corrige. Seus conhecimentos musicais, a devoção e os rituais foram passados pela família. Os irmãos são Guilherme, que é violeiro, Gustavo, Sabrina e Sara. O terno tem também violão, cavaquinho, rebeca, e a Bandeira do Divino, que é vermelha. As crianças, vestidas com saiotes e cocares de penas coloridas, camiseta cor da pele, cantando e dançando, levam arco e flecha e seguem os músicos.

Joaquim Poló, pai de Socorro, era violeiro da Marujada e os Caboclinhos eram comandados por Luizinho. Após uma troca entre amigos, Poló ficou com o comando dos caboclos. Socorro foi a primeira menina a desfilar no grupo. Eram apenas meninos descalços e nus com tanga de penas de galinha e uma vez seu pai a colocou entre eles e desafiou Mestre Zanza a dizer qual era a sua filha. Ele titubeou. O pai não participou por um período, e ela ficou parada uns anos também. Muito doente, Poló quis que ela seguisse. Então, decidiu levantar a caboclada. Todos ajudaram, conseguiu força, lutou, gostou e vai continuar. De contra-mestre foi a mestre. “Os caboclinhos são os índios, que festejam na cidade, cantam, batem flecha, dançam a dança do cipó, cantam o cântico da morte, dobram o instrumento, trançam fita, elevam o mastro, fazem o jogo de porta-bandeiras e tudo vai seguindo pela tradição oral. Com o tempo, os meninos, envergonhados de usar saia de penas, foram saindo. Foi quando chamei as meninas”, diz a cacicona. E completa: “os caboclinhos são coisas do Divino Espírito Santo, que meu pai deixou pra mim”. Pessoas de fora são aceitas, mas precisam respeitar os rituais, ensaiar, ter compromisso, visitar as bandeiras e fazer orações.

Ser a única mulher mestre num universo masculino gera preconceito. Este vem de dentro e não de fora. Quando Socorro começou tinha vergonha, usava cabelo curto, disfarçava. Mas superou, e chegou a ter apenas mulheres nos caboclinhos. Depois os homens voltaram. Nos dias de desfile, o terno sai cedo, almoça depois das 15 h e só volta tarde da noite. O cansaço não atrapalha, pois celebrar Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e o Divino Espírito Santo é brincar no meio da fé, da luz, do ritmo e da devoção. O prazer dessas experiências não se define: vive-se!

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   



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