sábado, 30 de julho de 2016

Álvaro Moreira

* Por Rodrigo Otávio Filho


Álvaro Moreira nunca mudou. Foi sempre o mesmo homem, o mesmo escritor, o mesmo poeta. Inteligência e coração, ironia sem maldade, seriedade e bom humor. Desde a Legenda da luz e da vida (1911), até As amargas, não... (1954), oferece ao leitor a mesma sensibilidade, a mesma filosofia. Mais do que excelente poeta, Álvaro Moreira é um excepcional artista, considerando-se o termo na sua significação mais alta. Em Álvaro tudo é estesia. Dá relevo estético às palavras que pronuncia, às coisas que explica, aos sentimentos que revela. Sempre fez da alegria e da dor uma obra de arte. Desde pequeno guarda a saudade no coração: “Esqueci o berço. Não esqueci o colo”, escreveu ele. E de longe também lhe vem o sentido da felicidade: “A felicidade não morre toda. A gente é sempre um pouco feliz da felicidade que teve.” Ou ainda: “O tempo feliz é sempre o tempo que passou. Embora, nesse tempo, se tivesse sido muito desgraçado...’

As ambições do poeta sempre foram diferentes, modestas: “Para fazer um céu basta uma estrela...” Sorrindo à ilusão chegou a escrever: “A ilusão, além do mais, nos torna melhores do que os outros homens...” Atura o silêncio porque “o silêncio é o sonho que não dorme...” E nunca se queixou da monotonia da vida: “Há certas paisagens sempre novas, aquelas por onde passamos todos os dias!...”

O autor de Um sorriso para tudo foi o amável filósofo dos poetas da sua geração, aquele que encarou a vida com mais otimismo: “Vamos sorrindo sempre, envelhecendo devagar... Um sorriso de êxtase para a beleza, um sorriso de esperança para o amor, um sorriso do encanto e de mofa para a vida... triste ou alegre, um sorriso para tudo...” E examinando-se a si mesmo, filosofou: “Cada homem tem em si mesmo, um mestre e um discípulo... O mestre aparece menos, é compassivo e triste; o discípulo aparece mais e é quase sempre um mau discípulo... Estas palavras são do meu mestre e do meu discípulo...”

Quem ler a obra de Álvaro Moreira, verificará ser toda ela epigramática. Ninguém melhor soube dizer em frases rápidas, claras e sintéticas o que quis. Em sua geração foi voz de comando. Pregou serenidade e sentido. Fez do paradoxo um jogo de palavras, base da sua arte. Comentou e criticou. No comentador está o homem em que a ironia se torna elemento de surpresa, espontâneo, inesperado. No crítico, surge o homem que sabe discernir.

Álvaro Moreira teve sempre bons olhos para ver as coisas boas e as coisas más da vida, e sentir, pelos homens, mais pena, mais piedade, do que admiração ou entusiasmo.

Viu a vida passar como um menino que vê as nuvens no céu movimentando-se, mudando de forma. É um homem feliz porque nunca anda só e saberá envelhecer:

“Todos nós na nossa vida, - escreveu - temos um poeta e um músico que nos acompanham. Felizes ou desgraçados nunca andamos sozinho. Eu tenho Verlaine e Schumann. Vão os dois comigo. Não preciso chamá-los. Vão agora como antigamente, quando eu tinha vinte anos. Faz uma noite muito branca. Vaga um perfume de primavera distante em torno da minha casa. Fico a pensar nas outras primaveras que chegaram, floriram e lá se foram. Como é bom envelhecer! Oh! minha vida! minha fita cinematográfica! Abro a porta que dá para a varanda. Em frente há um canteiro com um cipreste, umas rosas, umas magnólias. Os cenários mudam, os atores repetem sempre o eterno papel... Estou alegre? Estou triste? Não sei. Estou feliz. Tenho vontade de ligar o telefone para toda a gente...” Alô! Desculpe-me perturbar o seu sono. Mas a noite é linda e eu me sinto tão feliz, tão feliz... Desando a representar para mim mesmo... De repente, a memória acorda a Rêverie de Schumann... longe... E exalam-se depois da minha voz, uns versos trêmulos de Verlaine...”

Este trecho, tão característico da antiga prosa de Álvaro Moreira, que tanto é poeta escrevendo como vivendo, é padrão literário que mostra bem o escritor e o homem, o escritor emotivo e o homem isento de egoísmo.

Não será fácil encontrar em nossa literatura prosa mais musical do que a de Álvaro Moreira. Sempre diferente na interpretação, é o mesmo escritor harmonioso calmo e humano, poetizador de paisagens e sentimentos.

Páginas admiráveis são as introdutórias do livro O Brasil continua (1933); e terrivelmente verazes e maliciosas as caricaturas da parte do livro intitulado “Guarda-roupa” onde dá asas a sua ironia sem maldade.

O prosador Álvaro Moreira, bem como o teatrólogo, o poeta, o homem, não são diferentes. E ao longo da vida foram sempre os mesmos. Para bem conhecê-los basta ler as “lembranças” que reuniu em As amargas, não... Nelas, conta tudo. Não oculta nada. Transborda sinceridade. Confessa que sua educação sentimental veio toda do século XIX, daquele fim do século XIX, com Naturalismo, Parnasianismo, Simbolismo e, ainda, Romantismo.

Álvaro Moreira fez parte do grupo dos sete rio-grandenses que de Porto Alegre partiram para o Rio de Janeiro, onde se integraram na literatura brasileira na fase final do Simbolismo, sala de espera do Modernismo que vinha perto. Os sete do grupo foram fichados por Eduardo Guimaraens, em versos humorísticos, que objetivavam a faceta original e mais extravagante de cada um. A ficha de Álvaro Moreira termina assim:

...Vede-o: é o mais conhecido e atacado dos sete!
E para que da crítica o estilete
Definitivamente o sangre, o espete, o esmague,
Vai nos mostrar, por uma sexta-feira,
A claridade estética da Sombra.

Álvaro Moreira conta-nos que do colégio dos padres, em São Leopoldo, foi diretamente para o jornal em Porto Alegre. E desde então outra coisa não tem sido senão escritor. E confessa não saber a que escola literária pertence. “Ribeiro Couto fichou-me, por uns tempos, na escola penumbrista.” Em 1914, foi posto na escola futurista. “Em 1934, para Tristão de Ataíde, minha escola era a católica. Ora, eu não pedi matrícula em nenhuma dessas escolas.”

Definindo-se com certo pitoresco, não deixa de fazer um bom autorretrato, ou melhor, uma excelente caricatura, à qual falta, apenas, acrescentar uma dose de Romantismo: “Eu me pareço mesmo é com essas ampolas de injeção de bismuto. Tenho em mim as coisas necessárias. Mas preciso de ser sacudido, para que todas se misturem e, então, eu possa ser usado utilmente. A vida tem me sacudido bem...”

Apesar de escritor moderno, atualizado, Álvaro Moreira foi grande ledor de clássicos portugueses. Sobre Camões, escreveu: “Abandona-se Camões. Briga-se comos sonetos. E, um dia, de repente, é por um soneto que se volta a Camões.”

Por ter um sorriso para tudo, Álvaro é escritor e porta da mais alta sensibilidade, e que tem o seu lugar certo em nossa história literária. Em sua poesia existe sensibilidade e verdade. Em todos os seus versos uma infinita ternura:

Quero de ti a promessa:
quando vier o último sono,
hás de poisar-me a cabeça
em folhas mortas de outono...


para que sonhe (tão lindo!
o sonho dos sonhos vãos!)
que vou sereno dormindo
no amparo das tuas mãos...


Para encerrar, anote-se o epitáfio revelador:
Acreditei na Vida, e a Vida em mim. Depois,
Desandamos a rir de nós mesmos os dois.

(Simbolismo e Penumbrismo, 1970)


* Advogado, poeta, crítico literário, ensaísta e orador, membro da Academia Brasileira de Letras.

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