quarta-feira, 20 de abril de 2016

Vamos viajar, minha princesa?


* Por Mara Narciso


João e Maria casaram-se há muitos anos. Ele trabalha como carreteiro, desde antes do casamento, e a sua vida é uma interminável estrada. Ela não trabalhava fora, e quando engravidava via a barriga crescer sem o testemunho do marido. Quando João chegava, a barriga já estava grande. No período do parto, ele parava, e assim tiveram cinco filhos. Em certos períodos, até por muitos dias desse casamento, João estava viajando. Vinha um pouquinho e sumia nas entranhas desse imenso Brasil.

Maria criou os filhos e os educou praticamente sozinha. Passou a vida tomando decisões, quase sem a participação do marido, das mais simples, como fazer compras, pagar contas, escolher a escola dos filhos e educá-los, até as mais complexas, como comprar uma casa para a família. Criança com febre alta na madrugada e no desamparo, ela teve de carregar nos braços para o hospital. Mas filho um dia cresce e de trabalho passa a dar gosto e alegria, e mais a frente dá segurança, demonstra reconhecimento pelo que os pais (no caso, mais a mãe) fizeram por eles.

João viaja noite e dia transportando o que os brasileiros precisam. Para ganhar dinheiro, enfrenta tempestades, enchentes, calor, frio, cansaço (rebite?), solidão, comida e estrada ruins, engarrafamentos, greves, obstruções na estrada, impostos, tarifas altas de pedágio, perda de sono, risco de assalto, visão de desastres horríveis. O carreteiro é um sobrevivente de muitas vidas, e quem sabe de muitas mortes? Atravessar o Brasil incontáveis vezes, por décadas, levando uma carreta com milhões de reais dela e da carga e “nunca ter morrido” é inacreditável. João não sabe o que são férias. Raramente estaciona em casa uns poucos dias, e logo recomeça. No principio tinha medo, hoje tem precaução, até porque as ameaças aumentaram. Em casos limite viaja em comboio. O que tem mesmo é saudade de casa, mas uma saudade diferente, pois fica tanto tempo no caminhão que não sabe bem o que é estar em segurança com a família. Sempre rodando, o mundo parado lhe parece estranho.

Muitas vezes João ficava fora por meses, e já sumiu pelos lados da Amazônia por um ano. Sem vê-lo, Maria cultivava a saudade em fogo brando, e o amor em altas labaredas. Mas esta mulher de fibra e de paixão não reclamava da vida. A norma era cuidar de si, da casa, dos filhos e esperar por João. Um dia ele chega, e logo depois ele se vai. Some na cabine da carreta, desaparece mais uma vez.

Agora, Maria, de 53 anos tem saúde frágil, teve doença grave, não enxerga bem, porém não se queixa de nada, muito menos de João. Ele tem 59 anos, boa saúde, está registrado numa grande empresa, tem bom salário e se aposentará em breve. Usa com Maria uma maneira atenciosa, e, ao fim do expediente, costuma telefonar-lhe e lhe falar-palavras carinhosas, e na volta lhe traz um agrado. A mulher não sabe o que são ciúmes.

O carreteiro estreava uma carreta nova. Madrugada ainda, ele a convidou para ver a novidade. Ela estava com roupa caseira e tinha terminado de fazer o café. Foi até a porta, e ele pediu para que entrasse na cabine confortável, sentisse a cama de casal e avaliasse o espaço. Maria subiu, gostou do que viu, e dele recebeu o convite. Vamos dar uma volta? Mas João, a carreta está carregada! Ele disse que eram 60 toneladas de maquinário pesado. Maria não recusou. Tomando a estrada, João falou que a levaria para aquela viagem. Desta vez retrucou, mas eu não trouxe nada, nem roupa, nem nada de higiene. A gente compra no caminho. Olha João, caso você queira uma cozinheira, pode voltar e me deixar em casa, mas se você for cozinhar para mim eu aceito, eu vou aonde você quiser. E foram.

Viajaram românticos e inesquecíveis 40 dias, com mimos tais como presentes, comidinhas na boca, carinhos, delícias e banho de mar, de norte a sul do Brasil. Tudo compensou. A vida de Maria foi uma eterna espera, mas para cada partida, havia sempre uma chegada, enquanto a vida de João foi uma continua procura pelo porto seguro, e em cada deserto a busca de um oásis. O encontro dos dois foi uma explosão. Durável e invejável.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   



Um comentário:

  1. Um destino feliz para uma viagem longa e cheia de percalços. Que sigam assim, mundo afora!

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