domingo, 17 de abril de 2016

Paisagem de interior II

 

*Por Pablo Uchoa



Dona Germana e seu Antonio – que Deus os tenha – se impacientaram, e obrigaram o prefeito da pequena cidade de interior a inaugurar antes do tempo a menina dos olhos da Secretaria de Obras Públicas.

O assessor de comunicação garantiu que a cerimônia feita às pressas ainda assim teria impacto positivo na avaliação do distinto eleitorado nas eleições de outubro.

Não é nada, não é nada, desconversou o prefeito, mas todo o secretariado percebeu o desconforto do chefe ao cortar a fita vermelha sobre um palco montado nos fundos do novo cemitério, o único pedaço de muro que já estava pintado de branco.

Depois o padre benzeu os ataúdes, e o cortejo deu a volta no quarteirão, entrando com os dois primeiros moradores do campo-santo – sorte tiveram de partir juntos – pelo portal da frente, ainda em argamassa.

O buraco de seis palmos já estava pronto, não carecia de reformas, disse Manéu, o  coveiro. Dona Germana e seu Antonio eram até bem-vindos de adubar a terra, não vinha chovendo ultimamente na pequena cidade de interior.

As viúvas amigas da finada, bolsa e véu negros, lamentavam a partida em dobro, mas se conformavam pensando que já tinham programa para dali a uma semana, quando o carro de som da Casa Funerária Bom Jesus passasse anunciando a missa de Sétimo Dia.

Em respeito, Raimundo Filho ficaria de pé e deixaria sobre a mesa da mercearia o copo de vinho com limão e gelo, que de uns tempos para cá andava se metendo a tomar. Zé Bilau mangaria das formalidades do amigo:

- Raimundim gosta do vinho do prefeito, eu só tomo vinho rasgueira!

Zidinha achava que Raimundim estava mesmo era virando um chato com aquele tal de firulas que aprendera no Exército.

Mas a mãe dela, dona Francisca, estava convencida de que a vida na tropa aumentara a cultura do moço. A memória não ajudava, porém a velha estava certa de que havia sonhado com a promoção do rapaz a cabo, em apenas questão de meses.

- Raimundim é um bocó – dizia a filha.

Para desgosto da mãe, que advertia, não ia durar para sempre, tome jeito enquanto é tempo. Dona Germana e Seu Antonio – que Deus os tenha – já tinham até inaugurado o cemitério novo.

Raimundo Filho era um dos mais dignos da nova geração da pequena cidade do interior, pensava dona Francisca.

-  É um bocó – desafiava Zidinha. A mãe pedia silêncio.

- Respeito o carro que vai passando, diaba!

Do outro lado da rua, na mercearia, Raimundim se levantava e deixava o copo de vinho com gelão e limão em cima da mesa.

O mendigo nem se dava ao trabalho de olhar por cima do pedaço de trapo que servia de cobertor.

O vira-lata, pulguento, já tinha perdido o interesse em correr atrás daquela carroça que não andava sequer a vinte quilômetros por hora.

Na pequena cidade de interior, o carro de som da funerária Bom Jesus desperta mais interesse que o Carnaval.

·        Esta crônica faz parte da série “Paisagem de interior”.

(*) Cronista e editor do site www.narizdecera.jor.br. Vive atualmente na Inglaterra, dedicando-se a pesquisas no Institute for the Studies of the Americas, da Universidade de Londres. Autor do livro-reportagem “Venezuela: A Encruzilhada de Hugo Chávez” (Ed. Globo, 2003), menção honrosa no prêmio Vladimir Herzog 2004.

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