domingo, 24 de abril de 2016

Leituras peripatéticas


* Por Ronaldo Bressane


Nós, poetas, passamos esse piscar de olhos de tempo que nos é dado até desaparecermos nas trevas eternas criando poemas, sem saber ao certo a maneira como devemos escrevê-los, nem saber bem o que escrevemos. (…) O inconsciente profundo do poeta contém outras exigências. O poeta sempre visa ao crime perfeito. Mas o que significa afinal o crime perfeito? Obviamente refere-se a criar uma obra de impossível interpretação. (…) Quando leio um poema, só há dois tipos de emoção que recebo: ‘Nossa, como é lindo!’ ou ‘Que poema horrível!’. Não há outras, absolutamente. (…) Escrever poesia é, de fato, algo patológico. Isso não significa, no entanto, que todo doente possa se tornar um poeta. (…) Eu ensino poesia numa escola de poesia. Sinto enorme estranheza ao afirmar que ‘ensino poesia numa escola de poesia’. A sensação é idêntica ao de um mensageiro do Hotel Imperial em Tóquio, segurando uma bandeja com uma cerveja gelada e procurando manter sua postura ereta enquanto contempla Katharine Ross a seu lado lavando cuidadosamente o interior da vagina com um chuveirinho portátil. (…) Aqueles que escrevem imaginativamente devem estar preparados para enfrentar o pelotão de fuzilamento. (…) Depositei a caneta sobre a mesa, me levantei da cadeira e bocejei. Já não há nada mais a escrever. Finalmente consegui alcançar o momento presente. Nunca me senti tão bem como agora. Eu fui gangster. Nunca fui poeta”.

Genichiro Takahashi, Sayonara, Gangsters

“Se ao menos Alexis lesse… Mas essa criatura era tão drástica nisso quanto o grande presidente Reagan, que em sua longa vida não leu um único livro. Essa pureza incontaminada pela letra impressa, aliás, era o que eu mais gostava no meu menino. Em matéria de livros, bastam os que eu li!, e olhem para mim, observem-me. (…) A trama da minha vida é a de um livro absurdo em que o que deveria vir primeiro vem depois. É que esse livro, eu não o escrevi, já estava escrito: simplesmente fui cumprindo-o página por página, sem decidir. Sonho em escrever pelo menos a última, com um tiro, com minha própria mão, mas sonhos são sonhos e às vezes nem isso. (…) Aqui a vida humana não vale nada. E por que haveria de valer? Se somos cinco bilhões, a caminho de seis… Imprima-os em papel-moeda e vai ver se não se desvalorizam. Quando há uns cinco – digamos seis – com nove zeros à direita, a pessoa é um zero à esquerda. (…) A fugacidade da vida humana não me inquieta; me inquieta a fugacidade da morte: essa pressa de esquecer, que existe aqui. O morto mais importante é obscurecido pelo próximo jogo de futebol. (…) Se o país tem boas coisas? Mas claro, o bom é que aqui ninguém morre de tédio. A gente vai de buraco em buraco, se esquivando do assaltante e do governo. Companheiro, amigo e conterrâneo: não existe ave mais bonita que o urubu, nem de mais tradição; é o abutre do espanhol milenário, o vultur latino. Essas avezinhas têm a capacidade de transmutar a carniça humana em espírito voador. Melhores pilotos não há, nem os do narcotráfico. Olhem para eles planando no céu de Medellín! (…) ‘Gostaria de terminar assim’, disse a Alexis, ‘comido por essas aves para depois sair voando.’ (…) Desde o morro do Pán de Azúcar até o Picacho, os urubus, com suas penas negras, com suas almas limpas, voam sobre o vale, e são, do jeito que andam as coisas, a melhor prova que tenho da existência de Deus”.

Fernando Vallejo, A virgem dos sicários

“E ela respondeu: - ‘Grude seus lábios na carne. É simples isso. Descanse na fúria. Sim! Descanse na fúria. Quando eu gosto das palavras eu as repito um montão de vezes ou as esqueço para ficar com saudade delas. Deixe eu beijar o teu ombro, a parte queimada do teu ombro, a parte que eu e e brasa queimaram no teu braço. (…) Ele disse com os olhos fechados: - ‘Onde vai parar tudo isso? Serei perseguido, maltratado e este negócio de dizer que gosto de ser maltratado e perseguido é antigo, liso, superficial. Eu agradeço à prosa porque ela deixa a gente dizer um montão de coisas. Imagine se eu falasse em poesia! A poesia só é grande se existe no meio da prosa. (…) Eu também já fui idealista. Todo aquele que pensa já foi idealista porque no começo todos são inocentes: poetas, crianças. (…) Estava tudo destruído e é maravilhoso a gente contemplar algo destruído. (…) Ele estava em pé e tinha um lenço preto no pescoço e na mão direita tinha uma metralhadora suja e preta. Ele ergueu os braços e gritou: - ‘Caos! Caos! Agora és tu quem manda em tudo’”.

Jorge Mautner, Deus da chuva e da morte

* Ronaldo Bressane é escritor (Céu de Lúcifer) e redator-chefe da revista Trip (www.trip.com.br); seu blog é o Impostor (impostor.wordpress.com).

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