domingo, 24 de abril de 2016

Despedida às travessuras

* Por Manuel Antonio de Almeida


O Leonardo abandonara de uma vez para sempre a casa fatal onde tinha sofrido tamanha infelicidade; nem mesmo passara mais por aquelas alturas; de maneira que o compadre por muito tempo não lhe pôde pôr a vista em cima.

O pequeno, enquanto se achou novato em casa do padrinho, portou-se com toda a sisudez e gravidade; apenas porém foi tomando mais familiaridade, começou a pôr as manguinhas de fora. Apesar disto porém captou do padrinho maior afeição, que se foi aumentando de dia em dia, e que em breve chegou ao extremo da amizade cega e apaixonada. Até nas próprias travessuras do menino, as mais das vezes malignas, achava o bom do homem muita graça; não havia para ele em todo o bairro rapazinho mais bonito, e não se fartava de contar à vizinhança tudo o que ele dizia e fazia; às vezes eram verdadeiras ações de menino mal-criado, que ele achava cheio de espírito e de viveza; outras vezes eram ditos que denotavam já muita velhacaria para aquela idade, e que ele julgava os mais ingênuos do mundo.

Era isto natural em um homem de uma vida como a sua; tinha já 50 e tantos anos, nunca tinha tido afeições; passara sempre só, isolado; era verdadeiro partidário do mais decidido celibato. Assim à primeira afeição que fora levado a contrair sua alma expandiu-se toda inteira, e seu amor pelo pequeno subiu ao grau de rematada cegueira. Este, aproveitando-se da imunidade em que se achava por tal motivo, fazia tudo quanto lhe vinha à cabeça.

 Umas vezes sentado na loja divertia-se em fazer caretas aos fregueses quando estes se estavam barbeando. Uns enfureciam-se, outros riam sem querer; do que resultava que saíam muitas vezes com a cara cortada, com grande prazer do menino e descrédito do padrinho. Outras vezes escondia em algum canto a mais afiada navalha do padrinho, e o freguês levava por muito tempo com a cara cheia de sabão mordendo-se de impaciência enquanto este a procurava; ele ria-se furtiva e malignamente. Não parava em casa coisa alguma por muito tempo inteira; fazia andar tudo numa poeira; pelos quintais atirava pedras aos telhados dos vizinhos; sentado à porta da rua, entendia com quem passava e com quem estava pelas janelas, de maneira que ninguém por ali gostava dele. O padrinho porém não se dava disto, e continuava a querer-lhe sempre muito bem. Gastava às vezes as noites em fazer castelos no ar a seu respeito; sonhava-lhe uma grande fortuna e uma elevada posição, e tratava de estudar os meios que o levassem a esse fim. Eis aqui pouco mais ou menos o fio dos seus raciocínios. Pelo ofício do pai... (pensava ele) ganha-se, é verdade, dinheiro quando se tem jeito, porém sempre se há de dizer: - ora, é um meirinho!... Nada... por este lado não... Pelo meu ofício... verdade é que eu arranjei-me (há neste arranjei-me uma história que havemos de contar), porém não o quero fazer escravo dos quatro vinténs dos fregueses... Seria talvez bom mandá-lo ao estudo... porém para que diabo serve o estudo? Verdade é que ele parece ter boa memória, e eu podia mais para diante mandá-lo a Coimbra... Sim, é verdade... eu tenho aquelas patacas; estou já velho, não tenho filhos nem outros parentes... mas também que diabo se fará ele em Coimbra? licenciado não; é mau ofício; letrado? era bom... sim, letrado... mas não; não, tenho zanga de quem me lida com papéis e demandas... Clérigo?... um senhor clérigo é muito bom... é uma coisa muito séria... ganha-se muito... pode vir um dia a ser cura. Está dito, há de ser clérigo... ora, se há de ser; hei de ter ainda o gostinho de o ver dizer missa... de o ver pregar na Sé, e então hei de mostrar a toda esta gentalha aqui da vizinhança que não gosta dele que eu tinha muita razão em lhe querer bem. Ele está ainda muito pequeno, mas vou tratar de o ir desasnando aqui mesmo em casa, e quando tiver 12 ou 14 anos há de me entrar para a escola.

 Tendo ruminado por muito tempo esta idéia, um dia de manhã chamou o pequeno e disse-lhe:

- Menino, venha cá, você está ficando um homem (tinha ele 9 anos); é preciso que aprenda alguma coisa para vir um dia a ser gente; de segunda-feira em diante (estava em quarta-feira) começarei a ensinar-lhe o bê-a-bá. Farte-se de travessuras por este resto da semana.

O menino ouviu este discurso com um ar meio admirado, meio desgostoso, e respondeu:
- Então eu não hei de ir mais ao quintal, nem hei de brincar na porta?
- Aos domingos, quando voltarmos da missa...
- Ora, eu não gosto da missa.

O padrinho não gostou da resposta; não era bom anúncio para quem se destinava a ser padre; mas nem por isso perdeu as esperanças.

O menino tomou bem sentido nestas palavras do padrinho: “Farte-se de travessuras por este resto da semana”, e acreditou que aquilo era uma licença ampla para fazer tudo quanto de bom e de mau lhe lembrasse durante o tempo que ainda lhe restava de folga. Levou pois todo o dia em uma desenvoltura assustadora; o padrinho foi achá-lo por duas ou três vezes a cavalo em cima do muro que dividia o quintal da casa do vizinho, em grande risco de precipitar-se.

Ao anoitecer, estando sentado à porta da loja, viu ao longe no princípio da rua um acompanhamento alumiado pela luz de lanternas e tochas, e ouviu padres a rezarem; estremeceu de alegria e pôs-se em pé de um salto. Era a Via-Sacra do Bom-Jesus.

Há bem pouco tempo que existiam ainda em certas ruas desta cidade cruzes negras pregadas pelas paredes de espaço em espaço.

Às quartas-feiras e em outros dias da semana saía do Bom-Jesus e de outras igrejas uma espécie de procissão composta de alguns padres conduzindo cruzes, irmãos de algumas irmandades com lanternas, e povo em grande quantidade; os padres rezavam e o povo acompanhava a reza. Em cada cruz parava o acompanhamento, ajoelhavam-se todos, e oravam durante muito tempo. Este ato, que satisfazia a devoção dos carolas, dava pasto e ocasião a quanta sorte de zombaria e de imoralidade lembrava aos rapazes daquela época, que são os velhos de hoje, e que tanto clamam contra o desrespeito dos moços de agora. Caminhavam eles em charola atrás da procissão, interrompendo a cantoria com ditérios em voz alta, ora simplesmente engraçados, ora pouco decentes; levavam longos fios de barbante, em cuja extremidade iam penduradas grossas bolas de cera. Se ia por ali ao seu alcance algum infeliz, a quem os anos tivessem despido a cabeça dos cabelos, colocavam-se em distância conveniente, e escondidos por trás de um ou de outro, arremessavam o projetil que ia bater em cheio sobre a calva do devoto; puxavam rapidamente o barbante, e ninguém podia saber donde tinha partido o golpe. Estas e outras cenas excitavam vozeria e gargalhadas na multidão.

Era a isto que naqueles devotos tempos se chamava correr a Via-Sacra.

O menino, como já dissemos, estremecera de prazer ao ver aproximar-se a procissão. Desceu sorrateiramente a soleira, e sem ser visto pelo padrinho colocou-se unido à parede entre as duas portas da loja, levantando-se na ponta dos pés para ver mais a seu gosto.

Vinha aproximando-se o acompanhamento, e o menino palpitava de prazer. Chegou mesmo defronte da porta; teve ele então um pensamento que o fez estremecer; tornou-se a lembrar das palavras do padrinho: “farte-se de travessuras”; espiou para dentro da loja, viu-o entretido, deu um salto do lugar onde estava, misturou-se com a multidão, e lá foi concorrendo com suas gargalhadas e seus gritos para aumentar a vozeria. Era um prazer febril que ele sentia; esqueceu-se de tudo, pulou, saltou, gritou, rezou, cantou, e só não fez daquilo o que não estava em suas forças. Fez camaradagem com dois outros meninos do seu tamanho que também iam no rancho, e quando deu acordo de si estava de volta com a Via-Sacra na Igreja do Bom-Jesus.



(Memórias de um sargento de milícias, cap. III)


* Jornalista, cronista, romancista e crítico literário, membro da Academia Brasileira de Letras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário