quarta-feira, 20 de abril de 2016

Abordagens distintas de duas testemunhas da peste


A chamada “Era Tudor”, sobretudo os reinados da rainha Elizabeth I e do seu sucessor, Jaime I, foi um período memorável para a Inglaterra. Foi quando o país emergiu, por exemplo, como vasto império, como superpotência mundial, próspera e militarmente poderosa, sobrepujando uma Espanha, então em decadência. Seus navios singravam todos os mares do Planeta, levando e trazendo toda a sorte de mercadorias,  de e para todos os países do mundo. E não só isso. Culturalmente, a Inglaterra conheceu uma era das mais luminosas e vibrantes, com a emersão de grandes poetas, de dramaturgos inigualáveis, de destacados filósofos, enfim, de intelectuais dos mais respeitáveis e acatados. Paradoxalmente, a época que medeia de fins do século XVI a pelo menos metade do século XVII, foi, também, caracterizada por várias catastróficas epidemias de peste bubônica, que ceifaram milhares vidas e deixaram marcas indeléveis na população inglesa.

A despeito do flagelo não fazer distinção de classe ou de fortuna, as mais afetadas foram, obviamente, as pessoas pobres, carentes de informações e de quaisquer recursos. Os ricos tinham condições de viajar, de se afastar do foco da enfermidade e de permanecer fora do país enquanto esta não fosse controlada. Já os de escassas posses, e principalmente os que nada tinham (a imensa maioria) contavam, apenas, com o fortuito, com o acaso, com circunstâncias que não dependiam nem um pouco deles, para não serem vítimas da peste. Não tinham como fugir. Citei, em textos anteriores, um punhado de livros, de alguns escritores famosos desse período, que trataram, em suas obras, cada qual de sua forma, dessas epidemias. Por mais meticuloso que eu busque ser em minhas pesquisas, é até impossível tratar de “todos” os que escreveram sobre o assunto. Há que se considerar, entre outros tantos obstáculos, o principal deles: o tempo. Afinal, quase quatro séculos nos separam destes escritores.

Antes de dar o assunto por encerrado, todavia, devo mencionar outros dois escritores, mesmo que se trate de abordagem somente superficial de seus respectivos relatos das epidemias que testemunharam (e das quais escaparam incólumes). O primeiro é o memorialista, poeta e dramaturgo George Wither (1590-1667). Ele estava em Londres quando ocorreu a epidemia de 1625. Tratou dela em  extenso poema, cujo título pode ser traduzido como “O memorialista da Bretanha”, que publicou em 1628. Em seus versos, alterna denúncias do que entendia como “crueldade dos tempos”, com previsões que fez sobre as catástrofes que a Inglaterra sofreria adiante. Errou todas. Lendo seu poema, a despeito das dificuldades que um texto em língua estranha à nossa tendem a trazer, concluo que Wither foi não somente mau poeta, como péssimo profeta. No segundo caso, eu aduziria: “felizmente para seu país”. Caso suas tétricas profecias se concretizassem, a Inglaterra jamais se tornaria o poderoso império em que se tornou. Talvez até desaparecesse do mapa.

O outro escritor, que tratou de epidemias de peste, é o oposto de Wither, no que diz respeito à qualidade literária de sua obra e á projeção, que o torna bastante conhecido nos dias de hoje. É o prolífico e excelente dramaturgo Thomas Dekker (1572-1632), contemporâneo de William Shakespeare, do qual teria sido ora rival, ora parceiro. Oportunamente, e em outro contexto, proponho-me a tratar de sua rica biografia. Ele escreveu vários textos sobre a peste, com destaque para três deles: “News From Gravesend”, “The Meeting of Gallants at an Ordinary” e, principalmente, a peça teatral “O ano maravilhoso”. Neste último caso, soa como irônico o título dessa obra, já que ela trata da epidemia de 1603, época em que a peste era tão severa, que os teatros, principalmente os de Londres, foram todos fechados.

Outra coisa que me leva a estranhar o título dessa peça foi que, nesse ano específico, ocorreu a morte da rainha Elizabeth I, que tanto incentivou as artes na Inglaterra, sobretudo a dramaturgia, pela qual era obcecada. Sua descrição da epidemia lembra muito a feita por Daniel Defoe, concentrando seu foco nos dramas e agruras da população pobre, entregue não digo “á própria sorte”, mas ao seu supremo azar. Thomas Dekker foi um escritor tão importante (e também como poeta) que até hoje persiste uma polêmica, envolvendo um poema que compôs, intitulado “Golden slumber” (que eu traduziria como “Sonho dourado”). Diz-se que a letra de famosa composição com esse mesmo nome, atribuída à dupla Paul McCartney e John Lennon, uma das faixas mais conhecidas e apreciadas do célebre LP dos Beatles, “Abbey Road”, seria plágio dos versos do poeta renascentista.

Polêmicas à parte, parece-me que é mesmo. Sabe-se que em 1969, Paul McCartney criou a tal canção, mas baseado em texto de Thomas Dekker. O Beatle teria visto os tais versos no caderno de música de sua meia irmã Ruth. Ele estava na casa do pai, em Cheshire, brincando ao piano. Enquanto folheava um livro de músicas, que pertencia a Ruth (o velho Jim McCartney tinha se casado de novo), Paul se deparou com “Golden Slumbers”. Dekker a criou como canção de ninar. Sem conseguir ler a música, McCartney criou sua própria melodia, adicionando, aqui e ali, novas palavras, enquanto dedilhava. O “plágio” seria, portanto, apenas da letra. Mas... Bem que os Beatles poderiam ter dado “parceria”, posto que póstuma, a Dekker, cujos descendentes sequer cobrariam (nunca cobraram) direitos autorais, já que a composição tornou-se de domínio público. Mas esse fato mostra claramente a qualidade e a importância do escritor renascentista, contemporâneo de Shakespeare.

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twiutter: @bondaczuk  


Um comentário: