sexta-feira, 25 de março de 2016

Justiça e assistência social

* Por Ataulfo de Paiva

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Certo, não é pequeno o risco de falar em nova Justiça, em Justiça moderna, em novos horizontes da Justiça, idéias que repugnam em princípio e parecem mesmo paradoxas. Virtude moral que implica o respeito aos direitos de outrem, a Justiça aparece como a forma suprema de um soberano poder absoluto. Ela consubstancia e representa a defesa completa, a proteção inteira e ilimitada contra o mal, a eqüidade e a reciprocidade conjugadas, o respeito à dignidade humana, o perfeito consórcio das grandes individualidades coletivas com os altos interesses de toda a humanidade. O que não é justo não é moral, o que não é moral não é justo, afirmou Dollfus. Assim considerada, a Justiça não tem e não pode ter gradações. Ela não depende de convenção, não está sujeita a contingências, a incertezas, a eventualidades.

Constituindo a firme e perpétua vontade de traçar as regras atributivas e distributivas do que pertence a cada um, a Justiça é, dos grandes elementos do espírito humano, o que maior dificuldade encerra para ser definido e classificado. A lei moral é universal, e, por conseguinte, erraria sempre quem pretendesse, com uma única fórmula e sob um único princípio abstrato, caracterizar os sentimentos complexos da noção comum, da concepção genérica da Justiça.

Nem a idéia matemática da igualdade, nem a da proporcionalidade, da equivalência, da reciprocidade, nem a idéia da harmonia e da beleza, nem a de identidade e de acordo de pensamento, nem a idéia mais larga da própria solidariedade, entrado de algum modo na ampla noção de Justiça, bastam para esgotar o seu conteúdo, tal a variedade de imagens, o calor, a força que a sua evocação desperta no espírito dos homens. Ligada às concepções éticas, políticas, filosóficas e religiosas, a noção da Justiça e da sua evolução através das idades ainda hoje resta sem precisão nos domínios da consciência social. Nenhuma sociedade pôde repousar sobre regras de conduta provisórias. Para assegurar a estabilidade, torna-se mister a fundação de preceitos e princípios que regulem e inspirem a vida comum. São as fórmulas do ilustre Tanon, que numa simples observação pretende justificar o asserto. De um lado, a pobreza da idéia de Justiça nos tempos primitivos reduzida às reparações grosseiras, às agressões violentas; do outro lado, essa mesma idéia, entre os povos civilizados, condenando as mínimas ofensas, saindo dos círculos da família e dos agrupamentos primitivos para se entender amplamente, revestindo um vasto caráter de completa generalidade.

Mas as idéias morais e de Justiça encontram ainda maiores dificuldades. A escola evolucionista faz decorrer o fundamento delas do princípio geral do progresso. Aqui está o ponto de partida das intermináveis e complicadas dissensões. Ao conjunto da evolução da vida social deve estar inteiramente ligado o da evolução do Direito. O desenvolvimento da vida individual e coletiva forma a cooperação social, e as formas diversas correspondem aos múltiplos modos do exercício das atividades individuais, isoladas combinadas ou associadas. O progresso, que é a grande forma da manifestação espontânea, aparece então, pela passagem da cooperação forçada, procedente das formas da autoridade, para a cooperação voluntária, saída do consenso dos interesses e da vontade geral presumida que ela exprime. O ideal do progresso, conclui Tanon, consiste, nas sociedades civilizadas, no exercício da cooperação legal livremente consentida ou voluntariamente livre.

Essas proposições fazem ressaltar questões novas de não pequeno valor. Importa saber se a civilização pressupõe o progresso, ou, melhor, se a civilização progride ou se está em decadência. O problema apaixona os espíritos modernos. Claro está que ele é de molde a provocar alarme nos arraiais do evolucionismo militante. Para os seus entusiastas, a evolução é a lei do universo, que é, como conseqüência, a do próprio espirito humano. Na controvérsia, porém, entram igualmente as ciências da natureza e da história, a psicologia comparada e a sociologia. Cada uma busca apoio para as suas conclusões. Emile Faguet pretende pôr a questão nos seus devidos termos, criticando a obra de Jules Delvaille sobre a idéia de Progresso. Comte havia dito que essa idéia é toda moderna, inteiramente recente, sem que a antigüidade tenha tido noção algum dessa fórmula. Delvaille concebe o elemento progressivo como uma idéia, boa, bela, salutar, um prejuízo necessário. E Faguet quer que ele seja um prejuízo inútil e mesmo perigoso. Por que considerar útil um prejuízo que não conheceram os antigos e sem ele fizeram as maiores coisas, que não foi conhecido na Idade Média, na Renascença e que data apenas de duzentos anos?

Para o tema proposto, porém, o judicioso acadêmico faz uma concessão de alta monta. Não há progresso, mas é mister acreditar francamente nos progressos. Há melhoramentos parciais, possíveis, melhoramentos a que ele desdenhosamente chama - divertimentos necessários para o gênero humano. A idéia de progresso fica assim transformada não somente numa utilidade, mas numa necessidade, numa verdade. E nada mais característico do que o espírito de Justiça para demonstrar a escala palpitante das modificações lentas, da sucessão, da série de sentimentos, de princípios e de teorias, que formam uma verdade indiscutível e incontrastável.

A concepção da Justiça ainda permanece confusa, mas os efeitos dela nas sociedades modernas sempre aparecem positivamente, claramente definidos. Não é necessário remontar ao transformismo na antigüidade. Aí é bastante conhecido o estado das modificações. A preciosa unidade social era desconhecida; a ciência social não existia. A doutrina da exterminação recíproca era dominante. A violência era a regra. Não obstante, a sublime origem do cristianismo operou a grande e primordial etapa no terreno da Justiça amenizada, em que pese ao proudhonismo revolucionário, sempre pronto a considerar que o espírito de Justiça não pode sair de uma dedução dialética de noções.

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(Justiça e assistência: os novos horizontes, 1916.)


* Magistrado e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras.

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