sábado, 19 de março de 2016

Evolução histórica do Estado brasileiro


* Por Alberto Venancio Filho


A situação em que viveu o Brasil até o século XIX condicionou de forma peculiar a evolução histórica do Estado brasileiro. A escravidão colonial impôs um molde específico à evolução das instituições políticas e administrativas do Brasil, molde esse haurido de uma situação metropolitana que passou a apresentar, a partir de meados do século XVI, certa defasagem em relação à evolução das instituições dos demais países da Europa.

O reino português, nos séculos XIV e XV, em virtude da pequenez de seu território e pelo esforço de uma dinastia esclarecida, conseguiu antes dos demais países europeus a criação de um Estado nacional unitário. E foi essa unificação do Estado que permitiu em grande parte o admirável esforço das descobertas, dando ao país uma situação de supremacia nesses dois séculos. Por outro lado, um desenvolvimento científico e técnico racionalmente conduzido possibilitou à navegação portuguesa o papel de predomínio que assumiu na conquista dos mares. Porém, para um país de dimensões territoriais tão reduzidas, e com uma população que no início do século XVI mal chegava a um milhão de habitantes, o esforço empreendido fora demasiado para as suas forças. Por isso mesmo, quando da descoberta do Brasil, já se iniciava um processo de decadência, que levaria, paulatinamente, à perda das conquistas na Ásia e na África, e que culminaria com a perda da independência em l580.

A perda das possessões na Ásia e na África implicava em transformar a colônia do Brasil num elemento de primordial importância para o Reino Português. Nos primeiros anos após a descoberta do Brasil, ainda se concentraram os portugueses nas conquistas da Índias, em virtude de não terem sido aqui encontradas as pedras preciosas e as especiarias que constituíam então a parcela mais volumosa do comércio. Logo em seguida, entretanto, foi para o Brasil que Portugal voltou suas atenções, procurando manter no reino com os recursos provindos do Brasil a situação de fausto e a aparente riqueza que as conquistas da Ásia e da África haviam proporcionado. Caberia uma indagação mais detalhada a respeito deste Estado Português, que conseguira tão rapidamente um estado de hegemonia, para em seguida mergulhar numa posição de marasmo. O Estado da época das descobertas era realmente um Estado do tipo mercantilista, comandando todas as atividades econômicas do ultramar. Descreve um historiador que, no reinado de Dom Manuel, os entrepostos das especiarias provenientes das Índias localizavam-se nos próprios andares térreos dos palácios reais. No entanto, Portugal constituía somente uma via de acesso por onde transitavam esses produtos para os mercados europeus, não havendo no reinado português uma classe empreendedora que pudesse reter ou ampliar as atividades produtivas desse comércio, que se canalizava exclusivamente para o fausto e a opulência da Coroa.

A posição de progressivo empobrecimento da Metrópole vai assim forçar a administração portuguesa a empreender na colonização do Brasil um esforço intenso de apropriar-se, em proporções cada vez maiores, dos frutos produzidos pela colônia. É assim uma administração imbuída de um espírito eminentemente fiscalista, procurando sempre, através de várias formas e artifícios, reter e encaminhar para a Metrópole parcelas cada vez mais avantajadas dos recursos da colônia.

Não cabe aqui uma análise pormenorizada dos vários aspectos que assumiu esse sistema, mas, a título de exemplo, pode-se mencionar o modelo mais expressivo desse modo de agir que ocorreu na região das minas, por ocasião do auge da mineração. O regime da capitação, o sistema dos quintos e a constituição das casas de fundição, a proibição do transporte do ouro em pó, foram algumas das medidas sucessivamente aplicadas, procurando reter parcela significativa da riqueza daquela região.

Excederia os limites deste trabalho fazer uma análise minuciosa da administração colonial no Brasil, pois tal administração, no dizer de Caio Prado Júnior, "nada ou muito pouco apresenta daquela uniformidade e simetria que estamos hoje habituados a ver nas administrações contemporâneos. Isto é, funções bem discriminadas, competências bem definidas, disposição ordenada, segundo um princípio uniforme de hierarquia e simetria dos diferentes órgãos administrativos. Não existem, ou existem muito poucas normas gera que no direito público da monarquia portuguesa regulassem de uma forma completa e definitiva, à feição moderna, atribuições e competências, a estrutura da administração e de seus vários departamentos". Seja no regime das capitanias hereditárias, seja no do Governo Geral, seja no do Vice-Reinado, a máquina administrativa colonial constituía apenas a representação de um poder distante, a Coroa, cabendo ao Conselho Ultramarino a decisão sobre todos os assuntos da colônia.

Até a segunda metade, do século XVII, essa administração colonial não ganhara maior densidade, no dizer do mesmo Caio Prado Júnior, e competia às Câmaras Municipais o exercício de grande número de atribuições, "constituindo a verdadeira e quase única administração da colônia". O poderio das Câmaras Municipais representava, no entanto, a influência na atividade política e administrativa dos grandes proprietários rurais, uma vez que essas câmaras eram coompostas de vereadores e presididas por juízes ordinários, uns e outros escolhidos pelos homens bons, expressão eufemística, no dizer de Edgardo de Castro Rebello, pois "homens bons eram todos os que exploravam o trabalho alheio; os que do seu viviam eram livres ou escravos: nem os primeiros entravam naquele rol".

Através desse embrião de organização política e administrativa, ir-se-ia constituir um sistema de prevalência do poder privado sobre o poder público, que vai marcar até os nossos dias a feição do Estado Brasileiro.

(A intervenção do Estado no domínio econômico, 1968.)


* Professor e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras.

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